Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Católicos e cientistas fervorosos

Na Folha de hoje, a leitora Virgínia Graziano se queixa da “discriminação” da imprensa contra os cristãos adversários do uso de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa. Qualquer deles, escreveu Virgínia, é “tachado de católico fervoroso”. E compara: “No entanto, quando se trata de agnósticos, de ateus, de judeus ou de marxistas, que cultivam a cultura da morte e estão fazendo negócios com embriões brasileiros [sic], não há esses qualificativos à frente dos seus nomes.”


 


Faço de conta que não percebi a virulência religiosa, étnica e política da leitora para não apor à frente do seu nome o qualificativo que ela merece e entrar logo no mérito do problema.


 


Pelo menos a Folha e o Estado aplicaram o termo “católico fervoroso” ao procurador-geral da República, Claudio Fonteles, ao noticiar que na última segunda-feira ele pediu que o Supremo Tribunal Federal declare inconstitucional a Lei de Biossegurança aprovada em março.


 


A lei permite pesquisas com células-tronco embrionárias sob condições extremamente limitadas (restritas a embriões descartados em clínicas de fertilização). Não permite a sua clonagem para o mesmo fim (ou qualquer outro).


 


O procurador sustenta que a lei atenta contra o direito à vida consagrado na Constituição, “porque o embrião humano é vida humana”. É o argumento-mãe do catolicismo e de outras religiões: a vida começa no instante da fecundação.


 


É impossível saber se Fonteles iria ao STF se não fosse “católico fervoroso”. Mas clama aos céus a coincidência de suas posições nesse terreno com as da Igreja. Ele é contrário à interrupção da gravidez de fetos sem cérebro e ao aborto em casos de gestação resultante de estupro (autorizado em lei de 1940).


 


A outra autoridade a quem a mídia se referiu como “católico fervoroso”  – especialmente nas semanas que antecederam a votação da Lei de Biossegurança –é o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti.


 


Em nenhum dos casos foi uma “tachação”. Foi uma informação jornalística pertinente. A fé católica ardorosa – outros diriam ultramontana – do deputado foi tão parte integrante do jogo de pressões contra e a favor do projeto com a do procurador na sua tentativa de extrair da Lei as passagens sobre células-tronco.


 


É inimiginável que Severino e Fonteles se sintam ofendidos se alguém chamá-los de católicos fervorosos. Adiante, porém.


 


Para deixar transparentemente clara a sua indignação com a imprensa, a leitora escreveu que “nenhum jornalista ousa dizer que um agnóstico fervoroso ou um um judeu radical votou a favor da pesquisa com embriões humanos.”


 


Não se trata de ousar ou coisa do gênero. A qualificação seria impertinente porque não é por fervor agnóstico ou radicalismo judaico que se defendem as pesquisas em questão. Mas por uma concepção distinta daquela que cristãos e outros invocam para baní-las – e baseada na ciência.


 


Assim, não haveria por que chamar de “judia radical” uma das duas campeãs brasileiras da luta pelo direito à investigação científica com objetivos humanitários, a bióloga paulista Mayana Zatz, da USP (a outra é a sua colega de universidade Lygia Pereira). Se fosse para qualificá-las nesse contexto, a expressão certa seria “cientista fervorosa” – o que decerto só as envaideceria.


 


E não haveria nada de errado em aplicar o mesmo termo aos professores dos quais Fonteles se socorreu porque os seus pareceres sobre o início da vida respaldam a sua ação no Supremo.


 


Vida e vida humana


Os três grandes jornais comentaram a iniciativa. O Globo se limitou a criticar o procurador por ter ele esperado mais de dois meses para recorrer da lei que “conta com claro apoio não só da comunidade científica, no que se refere ao estudo das células-tronco, como da opinião pública em geral”. Para concluir: “Não é preciso entrar no mérito dos argumentos do procurador-geral para observar que já não é mais hora de retomar as discussões.”


Mas a Folha e o Estado foram direto ao catolicismo fervoroso do procurador.


Do editorial da Folha “A ação de Fonteles”: “A indiscutível competência técnica do procurador-geral da República, Claudio Fonteles, parece ter sido abalada por suas convicções religiosas… A argumentação de Fonteles tem proveniência católica…O problema está no fato de que a tradição jurídica brasileira não corrobora a tese de que a vida começa com a fertilização do óvulo… Como procurador-geral da República, Fonteles pode e deve agir segundo sua consciência. Só não deveria esquecer o que aprendeu na faculdade de direito.”


Do editorial do Estado “Fé não é direito”: “O fundamento [do] procurador-geral só pode ser o da doutrina católica, religião da qual se confessa fervoroso praticante… Quando uma autoridade pública representa a sociedade brasileira, há que levar em conta que atua em esfera eminentemente civil, laica, sendo-lhe descabido, nessa função, qualquer laivo de proselitismo religioso… No direito brasileiro, a pessoa física só surge em razão do nascimento com vida… As melhores tradiçôes jurìdicas e republicanas nâo incluem a submissâo a visões de natureza puramente confessional.”


Ora, direis, o direito positivo pode não ser unha-e-carne com a verdade científica. Mas, no caso, com todo o respeito pela opinião em contrário de cientistas brasileiros em princípio tão respeitáveis como as doutoras Mayana e Lígia, só filosoficamente, ao que parece, pode ser considerado vida humana o aglomerado de células indiferenciadas, com alguns dias de formação, sem órgãos nem um sistema nervoso que lhe permita experimentar qualquer sensação.


Ressaltei vida humana porque esta e apenas esta a Igreja diz ser sagrada, por ser emanação da divindade. E esta e apenas esta a Constituição diz que deve ser protegida. Ou seja, mesmo que se admita que a vida começa no encontro do espermatozóide com o óvulo, o conceito de vida humana inclui outros atributos. No mínimo, o sistema nervoso – portal da auto-consciência que faz do Homo Sapiens uma espécie única neste planeta.


Recentemente, a Justiça americana acabou com o mórbido espetáculo de fanatismo dos que queriam prolongar a “vida” de uma paciente há mais de uma década sem o mais remoto vestígio de atividade cerebral. Se é cada vez mais consolidado o consenso científico de que morte quer dizer morte cerebral, não seria apenas razoável dizer que vida humana é vida cerebral? Sem vida cerebral, o feto não teria condições de viver fora do útero e independentemente da mãe.


Um registro final. No Globo de hoje o jornalista Luiz Paulo Horta, católico não sei se fervoroso ou não, escreveu um artigo cujo título é uma pergunta retórica: “O procurador pisou em falso?”, porque já no primeiro parágrafo o leitor fica sabendo que o autor considera injustas as críticas a Fonteles.


Horta quase tem razão num ponto: “O direito de interferir ou não com a vida humana não pode ser um espaço entregue ao pensamento científico, muito menos ao jogo das emoções sociais.” O quase vai por conta da falta da palavra “apenas” antes de pensamento científico. Porque é axiomático, numa visão humanista, que nem tudo que a ciência pode fazer deve ser feito. Por isso as leis proíbem a clonagem reprodutiva.


Mas Horta está absoluta e irremediavelmente errado quando atribui à visão religiosa a gênese do que seria “uma sensibilidade especial para certas coisas – como, por exemplo, o valor incalculável da vida humana”. Não só porque os agnósticos e ateus (que a leitora da Folha tanto abomina) podem ser tão ou mais sensível a isso.


Mas sobetudo porque o jornalista deu de lembrar que, “por acreditar nesse valor, os primeiros cristãos, defenderam a integridade e a dignidade dos escravos, quando ninguém falava em direitos humanos”.


Podíamos passar sem essa. Desde o momento em que o cristianismo se constituiu como poder, até relativamente pouco tempo em termos históricos, o que fez – a exemplo de outras forças que agiam ou agem em nome de outros entes supremos – foi produzir oceanos de sangue: sangue de hereges, judeus, muçulmanos, feiticeiras, bolchevistas. As duradouras fogueiras acendidas pelo Tribunal do Santo Ofício são apenas o símbolo de quase 2 mil anos de intolerância, violência, abuso de poder e corrupção.


Os cristãos que se arvoram em defensores da vida contra os cientistas fervorosos que querem salvar vidas não têm o direito de ignorar esse ignominioso passado.