“Um dente cariado na minha boca dói mais do que mil mortos no Sião”, comparou certa vez o escritor Arthur Koestler. Tanto dói que também impede o doente de ver o que acontece ao seu lado, mesmo quando se trata de um acontecimento sem paralelo.
Mais uma vez concentrados numa crise de corrupção – essa cárie que volta e meia parece chegar ao limite do suportável, mas sempre pode ficar pior –, nem os brasileiros que lêem as páginas de assuntos internacionais da imprensa tomaram conhecimento de uma notícia histórica, ou pararam para pensar nas suas implicações. Quem sabe até para o Brasil.
No mesmo dia em que a performance do deputado Roberto Jefferson no Conselho de Ética da Câmara ficava com a parte do leão do noticiário, os jornais deram que, na Argentina, a Corte Suprema de Justiça declarou inconstitucionais as leis de 1986 e 1987 que consideravam inimputáveis os perpetradores de crimes contra a humanidade na ditadura militar de 1976 a 1983.
Nesses sete anos, o regime eliminou, na maioria dos casos depois de torturas que nada ficavam a dever aos da Gestapo na Alemanha de Hitler, 30 mil pessoas – 1 em cada 900 argentinos.
Por falar em Hitler, Stálin dizia que 1 morto é uma tragédia, 1 milhão de mortos, uma estatística. Por isso fez a coisa certa o excelente correspondente do Estado (e da GloboNews) em Buenos Aires, Ariel Palacios, ao começar a sua matéria-memória de hoje sobre os crimes dos gorillas argentinos e as suas consequências mais profundas para o seu país com a seguinte pergunta:
“O que teria acontecido com o Brasil se entre 1964 e 1985 tivessem sido assassinadas figuras como o então sociólogo Fernando Henrique Cardoso, músicos como Chico Buarque e Gilberto Gil, atores como Ney Latorraca, cartunistas como Ziraldo, líderes sindicais como Luiz Inácio Lula da Silva…?”
Seja então pelo número de vítimas, seja por quem muitas delas eram, seja enfim, pelo despovoamento de uma geração de jovens “que prometiam ser potenciais líderes nas diversas esferas da sociedade”, como destaca Palacios, empobrecendo hoje a faixa etária de 40 a 50 anos, a tragédia argentina tem tamanhas proporções que a sentença da Corte Suprema seria, em outras circunstâncias, a principal manchete da grande imprensa brasileira.
Hoje se noticia que entre 500 e mil miltares poderão ser processados por sua participação no genocídio político argentino. Acabou para eles a proteção da “obediência devida”, nome de uma das leis inconstitucionais, e a certeza de que a história de horrores impunes tinha chegado ao “ponto final”, nome da outra lei.
O papel amarelou
A Argentina não foi o único país onde os democratas tiveram que fazer um pacto faustiano com as Forças Armadas, pagando-lhes com a moeda da impunidade a não intervenção na vida política nacional que se queria reconstruir.
Aos brasileiros, ninguém precisa lembrar que a anistia – uma demanda que andava de braços dados com a da redemocratização – foi assinada em 1979 pelo truculento general João Batista Figueiredo (o que saiu pela porta dos fundos do Planalto no dia em que José Sarney assumiu em lugar de Tancredo Neves).
Uma das cláusulas tácitas do mais célebre acordo do gênero, o Pacto de Moncloa, na Espanha, de que o rei Juan Carlos foi fiador, em 1977, era entregar aos cuidados da História e não da Justiça os crimes da ditadura franquista.
Transição negociada também se fez no Chile e no Uruguai. Mas, com o tempo, o papel em que o lado das vítimas e o dos algozes se comprometeram a deixar o passado no passado amareleceu e começou a se desfazer.
As “caravanas da morte” do Chile de Pinochet foram confessadas. O ditador, no limite da senilidade, enfrenta processos por crimes contra os direitos humanos e o Tesouro chileno.
Mudam também as cabeças. Na Argentina, onde se conhecem em detalhes as atrocidades – não em pouca medida por terem sido tantas –, o chefe do Exército, tenente-general Roberto Bendini, aparece nos jornais de hoje dizendo que “todos os responsáveis (pelas torturas, “desaparecimentos” e sequestros de filhos pequneos dos mortos) deverão ser julgados e condenados”.
Retórica? Não parece. Ele diz também que agora é preciso revogar os indultos concedidos pelo então presidente Menem a cerca de 280 altas patentes militares, entre eles o general Jorge Rafael Videla e o almirante Emílio Massera, que cumprem prisão domiciliar pelo roubo de bebês de presos políticos.
Deve haver uma ironia no fato de que, falando de corrupção, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva diz que não deixará pedra sobre pedra na apuração das maracutaias – e ao mesmo tempo o seu homólogo argentino Néstor Kirchner celebra o fim da impunidade em matéria de violação dos direitos humanos.
E pensar que em outubro do ano passado, há apenas oito meses portanto, a divulgação de fotos que seriam do jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura no Doi-Codi de São Paulo, em 1975, levou o Exército divulgar uma nota raivosa, fazendo a apologia do golpe de 1964.