O ex-ministro Célio Borja diz que a busca da igualdade requer conhecimento jurídico, sensibilidade social e visão de estadista. Borja parte da necessidade de conciliar dois conceitos inscritos na Constituição. O primeiro é o critério da capacidade. O segundo critério é da igualdade efetiva.
– Como o senhor associa os dois critérios?
Célio Borja – Está na Constituição: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de (….) V – acesso acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”.
O critério da capacidade é constitucionalmente determinado. Isso não quer dizer, numa interpretação liberal, que esse critério fosse excludente de outros, socialmente relevantes. Por exemplo, a igualdade de oportunidades é sem dúvida nenhuma um princípio da Constituição. A Constituição quer que todos sejam iguais perante a lei e, mais do que isso, que essa igualdade seja real, substantiva e até concreta. O que se tem que fazer é, a meu ver, conciliar os dois princípios, o da capacidade e o da igualdade.
– Como promover a igualdade?
C.B. – O que sempre se teve como promotor da igualdade, nos sistemas constitucionais, e, mais, do que isso, na realidade social contemporânea, é a educação básica. É por ali que a gente começa a se igualar, e se começa a construir até uma nação. O conceito moderno de nação não é mais o de origem comum por consagüinidade, mas sim de uma comunhão de interesses, de valores, de cultura. Pouco importa se o indivíduo nasceu aqui ou não. Estando no território brasileiro, tem direito à educação. Um menino estrangeiro que vive no Brasil tem todos os direitos de um menino brasileiro, e, segundo o moderno direito constitucional, um menino brasileiro vivendo no exterior também deverá ter direito a tudo aquilo que o menino americano, chinês, russo tiver. Esses dois princípios têm que se conciliar. O princípio da igualdade tem por fundamento a boa educação ministrada a todos, sem exclusão de ninguém. Não é possível se ter uma educação nível A para um grupo da sociedade e nível D, E, F para outros grupos da sociedade. Isso é a negação da igualdade. Não apenas perante a lei. É a igualdade substantiva, são as oportunidades de participação nos bens da vida. E tudo isso começa pela educação básica, fundamental. O que se tem hoje é a desigualdade da educação básica oferecida aos diferentes grupos da sociedade. Essa é a nossa realidade, e a realidade de muitos outros países, mesmo países de Primeiro Mundo.
– Segundo Demétrio Magnoli, em artigo na Folha de S. Paulo, aprovar o Estatuto da Igualdade Racial equivaleria a fazer uma nova Constituição, em que o racismo estaria consagrado.
C.B. – Ele teria razão, e pode vir a ter razão, se esse critério de favorecimento de determinados grupos sociais, pela cor da pele, ou pela origem étnica, for excludente.
– De que maneira?
C.B. – Por exemplo, “só pretos”, “só pardos”, “só brancos”, “só indígenas”. Isso é difícil de acontecer entre brancos e negros. É muitos fácil de acontecer entre indígenas e brancos. Eu fui o relator, na Câmara dos Deputados, do primeiro Estatuto do Índio, na década de 1970. E o grande problema que eu tinha que enfrentar é que havia grupos de antropólogos, filósofos, sociólogos que, ao reservar para os índios determinados bens, excluindo, portanto, os não-índios, também enclausuravam os índios. “Índio não pode se misturar. Se uma mulher índia quiser se casar com um não-índio, isso é proibido”. Se a adoção do critério étnico excluir os “outros” dos bens da vida, dos valores que devem ser comuns a todos, aí, sim, ele tem toda a razão. Daí a delicadeza dessa operação. Isso não é para qualquer um. Isso é para quem tenha não apenas conhecimento jurídico, mas uma extraordinária sensibilidade social e uma capacidade de previsão que é própria do estadista. Ele trabalha de olhos no futuro. Não está apenas querendo resolver o problema de hoje, nem agradar a essa ou àquela comunidade ou grupo. Isso é para o homem de Estado. Não é para políticos de interesses eleitorais.
– Essa matéria tramitou no Senado por unanimidade. Praticamente não houve reparos. Será que o Senado da República inteiro deixou passar o tema sem dar importância? O governo federal criou uma estrutura ativa para fazer uma política de inclusão. Isso comprovaria que as chamadas ações afirmativas não são inconstitucionais. Mas a maneira como vão ser trabalhadas fará muita diferença.
C.B. – É um cuidado absolutamente necessário para que ela produza bons frutos, e não crie problemas que vão se tornar, como em outros países, insolúveis. Problemas de hostilidade entre grupos sociais ou grupos étnicos que depois ninguém consegue apaziguar.
– Que balanço o senhor faz da aplicação do Estatuto do Índio aprovado na década de 1970?
C.B. – É positivo, do ponto de vista do usufruto indígena de terras da União, de terras tradicionalmente ocupadas por eles. Nesse sentido teve resultados muito bons. Demarcaram-se as terras indígenas, eles passaram a habitar nelas, com incidentes aqui ou ali, que não podem deixar de existir, mas sempre resolvidos, ou pela Justiça, ou administrativamente, e hoje já se pode falar num patrimônio indígena gerado pela exploração das riquezas dessas terras. Provavelmente em mais vinte, trinta anos essas populações vão ter um patrimônio considerável, capaz de fomentar, por exemplo, escolas e outras iniciativas úteis para o seu próprio desenvolvimento. Eles acabam se auto-sustentando nesse esforço coletivo de desenvolvimento.
Sobrou um problema, que a falta de sensibilidade política acaba por criar. É supor que os índios são proprietários. Ele são usufrutuários. As terras são da União. Salvo as terras que eles compraram pelos meios previstos na legislação civil. Mas, de um modo geral, essas terras indígenas são propriedade da União e usufruto deles. Quer se transformar isso num direito de soberania, num direito político, não num direito civil. O que regula a posse indígena é o direito civil. Eles não são uma nação que que possui um território, tem um governo próprio, tem uma individualidade própria na comunidade das nações. Isso pode interessar aos que eventualmente cobicem o território brasileiro ou a sua exploração. Mas não interessa ao Brasil, nem interessa a eles, povos indígenas, porque eles acabam sendo sujeitos estranhos dentro da comunidade nacional em que vivem, em razão da qual possuem a terra, em razão da qual se desenvolvem, porque os investimentos da União nessas terras indígenas tendem a ser consideráveis, em escolas, em saúde, em estradas, no fomento agrícola e até na semi-industrialização da produção agrária. Eles são brasileiros, não são nem americanos, nem europeus.
– E as Forças Armadas têm um problema sério com isso.
C.B. – Têm, principalmente nas fronteiras. Mas é preciso mostrar com serenidade quais são os interesses deles, desses brasileiros que têm um status especial dentro da comunhão nacional.