Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Chamado à reflexão

Mesmo que o acesso aos textos da Folha de S.Paulo na internet não estivesse restrito aos assinantes do jornal ou do provedor UOL, haveria motivos para transcrever por inteiro o seu editorial de hoje ‘Comovidos com razão’ [sub-título ‘Congresso deve dar resposta ao clamor por segurança sem fomentar ilusões, mas adotando providências imediatas.’]

Leiam e digam se não tenho motivos de sobra para achar que este editorial é a melhor coisa publicada na grande imprensa brasileira sobre as polêmicas mudanças na legislação penal que entraram na ordem do dia desde a bárbara morte do menino João Hélio, uma semana atrás.

É o que saiu de melhor não porque tudo que nele se leia seja incontestável. Mas porque, graças ao seu equilíbrio, clareza e abrangência, oferece o roteiro mais bem traçado que se poderia desejar para injetar sensatez e propriedade na discussão do que fazer em matéria de maioridade penal no país.

É raro encontrar em um único texto uma pauta tão precisa sobre um dilema dessa envergadura. Ao editorial se aplica, nesse caso justificadamente, o conhecido clichê ‘um chamado à reflexão’.

Lá vai:

‘Pela quarta vez em sete anos, o Congresso Nacional é sacudido da modorra corporativista por um crime monstruoso e se apressa a dar alguma satisfação ao público acossado pela insegurança. A atmosfera emocional não é decerto a mais propícia para decidir racionalmente temas graves como o da maioridade penal. Sendo essa a única oportunidade à mão, que se enfrente o debate ao menos com a serenidade possível.

Mais de duas dezenas de emendas constitucionais já foram propostas para alterar o artigo 228 da Constituição, que fixa em 18 anos a idade em que o cidadão se torna imputável e é por alguns juristas considerada cláusula pétrea da Carta. Nenhuma prosperou até agora. Novo fracasso só agravará o divórcio entre Parlamento e população.

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado anuncia a retomada da discussão de seis propostas de emenda constitucional (PECs) que modificam a inimputabilidade de adolescentes e crianças. É duvidoso que a mobilização atual possa desfazer os argumentos contra a medida isolada. É improvável que seja capaz de provê-la de eficácia quanto ao objetivo consensual: reinstaurar a segurança pública.

Somente 17% de 57 países incluídos num levantamento da ONU admitem condenação de menores de 18 anos. Os mais célebres são Estados Unidos e Reino Unido, ambos dotados de sistemas prisionais eficientes. E também, cabe lembrar, de uma rede social de apoio que previne a entrada de jovens no crime.

No Brasil, reduzir a maioridade penal para 16 anos implicaria abandonar jovens criminosos, em princípio mais recuperáveis que adultos, a cuidado dos facínoras que detêm o poder nas pocilgas que chamamos de prisões. É o que já acontece na prática, uma vez que não se distinguem delas muitos dos estabelecimentos a que são recolhidos menores para cumprimento de fictícias medidas socioeducativas.

Mesmo que uma das PECs vingasse, seu efeito sobre a segurança pública seria limitado. Apenas cerca de 10% dos crimes são praticados por crianças e adolescentes. Nos homicídios dolosos, a parcela cai para 1%.

Mais sentido haveria na proposta de modificar o Estatuto da Criança e do Adolescente, e não a Constituição. Diante do imperativo de combater a impunidade e de afastar do meio social indivíduos perigosos, ressalta a insuficiência do limite máximo de três anos para a internação de criminosos juvenis. É preciso elevá-lo para pelo menos dez anos.

Seria crucial reservar a medida, contudo, para crimes dolosos contra a vida. Também é prudente circunscrevê-la por critérios estritos, com efetivo direito de defesa. De outro modo, haveria o risco de que redundasse numa pena de aplicação automática. Ademais, a reclusão precisaria ser feita em instituições especiais, que separassem menores violentos de simples infratores.


É notório que tal medida isoladamente não bastaria para refrear a criminalidade.

Isso em nada diminui a obrigação de tornar o sistema penal mais eficaz. Se o exame de medidas pontuais não deve sucumbir ao turbilhão emocional, já não resta dúvida de que é imperioso adotar providências de efeito imediato, pois a situação ultrapassou todos os limites do tolerável.’

P.S. Da série ‘Podíamos passar sem essa’

Informa a Folha que jornalistas – ‘integrantes de equipes de televisão’ – presentes à acareação dos acusados pela morte do menino os agrediram a pontapés. E que o delegado responsável pelo inquérito passou um pito no pessoal. ‘A imprensa tem que ser isenta’, ensinou.

Faz tempo que uma frase dessas não se aplica a algum barão da mídia mas à peonada do ofício, por um comportamento inadmissível.

A palavra certa, aliás, nem é ‘isenta’, mas ‘civilizada’. A turma foi quase tão incivil como os policiais que voltaram a agarrar os acusados pela cabeça para que os seus rostos pudessem ser fotografados e filmados. Digo ‘quase’ porque o Estado, por meio dos seus agentes, é o primeiro a ter a obrigação de obedecer à lei e dar o exemplo.

Mesmo que houvesse pena de morte no Brasil, o poder público continuaria a ser responsável pela integridade dos condenados até o momento da execução. O contrário disso foi o enforcamento do ex-ditador Saddam Hussein, um verdadeiro linchamento.

A violência no país chegou a tal ponto que as pessoas mais decentes perdem por completo o senso de medida das coisas. Outro dia, o porteiro de um prédio, moço cordato e ex-jardineiro, reagiu com as seguintes palavras a um comentário sobre o grafitismo que emporcalhou os vidros da fachada do edifício: ‘São uns lazarentos. Por mim, ía tudo pra cadeira elétrica.’

Nesse clima, o senador capixaba Gerson Camata quer um plebiscito sobre a redução da maioridade penal e da adoção da prisão perpétua no país. Não consigo imaginar uma consulta dessas transcorrendo com a ‘serenidade’ que o editorial da Folha defende no trato da situação que efetivamente ‘ultrapassou todos os limites do tolerável’.

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