A Colômbia é o pais mais violento da América Latina, afirma em entrevista ao Observatório da Imprensa o professor Antonio Carlos Peixoto, e o engendramento dessa violência foi um processo muito mais complexo e mais antigo do que dão a entender os relatos jornalísticos correntes.
O cenário quase sempre apresentado pela mídia, em que se movimentam nas últimas quatro ou cinco décadas, por ordem de entrada em cena, o governo colombiano, guerrilheiros de esquerda, narcotraficantes, paramilitares de direita e o governo americano, é o ponto de chegada ao século XXI de uma construção histórica cuja base repousa na guerra pela independência do país, entre 1810 e 1819.
Ao longo de quase dois séculos, até praticamente 2006, quando Álvaro Uribe foi reeleito presidente, o país estruturou-se politicamente em torno do embate, muitas vezes sangrento, e muitíssimo sangrento, entre dois partidos, o Conservador e o Liberal.
Professor da Uerj, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Antonio Carlos Peixoto deu ao Observatório da Imprensa quatro entrevistas sobre política da América do Sul. São textos que fogem dos formatos jornalísticos habituais. Reproduzem verdadeiras aulas de história política dadas por telefone.
A primeira delas, “As muitas Américas do Sul”, nasceu em contraponto ao rótulo um tanto reducionista que havia sido colado a uma “onda esquerdista” no continente. Peixoto reivindicou mais análise de cada caso em separado, como premissa para avaliações de conjunto.
A segunda, “Mídia brasileira precisa ver Paraguai além da caricatura”, foi motivada pelo anúncio de que o bispo católico Fernando Lugo pretende concorrer à presidência do Paraguai em 2008 e propõe entre suas bandeiras de campanha a revisão dos acordos firmados por Brasil e Paraguai para construir a hidrelétrica de Itaipu, acordos que, com razão, considera lesivos a seu país. Pareceu apropriado examinar com um pouco mais de profundidade a trajetória política do Paraguai.
Na terceira entrevista, “Decomposição política da Venezuela antecede Chávez”, houve uma cambalhota geográfica e a conversa foi parar na Venezuela. Não exatamente na hoje tão popularizada Venezuela de Hugo Chávez, mas na insana e vergonhosa trajetória dos partidos políticos dominantes na Venezuela que propiciou o advento de Chávez.
Antonio Carlos Peixoto dividiu em duas partes a entrevista ao Observatório da Imprensa sobre a Colômbia.
A primeira, que é publicada a seguir, enfoca basicamente o século XX até a emergência do narcotráfico como fenômeno político e geopolítico.
A segunda entrevista, a ser publicada nos próximos dias, mostra o apogeu do narcotráfico colombiano e a reação do governo americano.
Nestas, como nas outras entrevistas, a preocupação sempre recai na identificação das grandes linhas do processo político. A perspectiva histórica ajuda a situar os eventos, recentes, atuais e vindouros, numa linha explicativa mais consistente do que o muitas vezes inevitável retrato instantâneo transmitido na mídia.
Eis a primeira entrevista.
Dois partidos engalfinhados na violência
Antonio Carlos Peixoto – A Colômbia tem alguns dados estruturais necessários ao bom entendimento das coisas. O primeiro é a enorme capacidade de sobrevivência do sistema partidário. O sistema partidário colombiano girou em torno do Partido Conservador e do Partido Liberal desde a independência, basicamente, até as eleições de 2006 [recondução de Álvaro Uribe; até então, a reeleição para mandato sucessivo era proibida]. As formas de relacionamento existentes entre os partidos variaram. Na maior parte do tempo esse relacionamento se deu por meio da violência. Liberais e conservadores não eram adversários políticos, eram inimigos.
Quando falou da Venezuela, o senhor disse que dois países tiveram independências muito sangrentas…
A.C.P. – A Colômbia também teve, porque [Simón] Bolívar freqüentemente tinha que entrar pela Colômbia para chegar à Venezuela, ou então, quando recuava, ele saía da Venezuela e entrava em território colombiano.
Mas o dado básico da vida política colombiana é esse: liberais e conservadores eram inimigos uns dos outros.
Isso significa que eles entravam em conflito armado?
A.C.P. – Em conflito armado, com freqüência. Na virada do século XIX para o XX houve a famosa Guerra dos Mil Dias [1899-1902]. Essa foi, certamente, a mais longa e mais sangrenta das guerras civis colombianas até então, mas houve outras.
Ao contrário do que a mídia em geral informa, a violência colombiana não começa com guerrilheiros indo para o mato na segunda metade do século XX. A violência vem do século XIX, quando, por exemplo, os liberais tomavam o poder, fechavam as igrejas e matavam os padres. Eram anticlericais furiosos. E, evidentemente, quando os conservadores pegavam os liberais, fuzilavam também.
A.C.P. – É muito pesada a violência na Colômbia. É o país mais violento da América Latina. O México teve lá o diabo da Revolução [1910-20], mas, terminou a Revolução, as coisas mais ou menos se acertaram. Na Colômbia, não se acertaram nunca. Começou na independência, chegou ao ponto altíssimo no período que vai de 1948 a 1953.
Como se chegou a esse quadro conflagrado de 1948?
A.C.P – A Colômbia moderna vai começar mais ou menos no mesmo ano em que começou o Brasil moderno, em 1930, quando o Partido Liberal consegue ganhar as eleições, rompendo um longuíssimo ciclo de domínio conservador.
Dois meses antes da Crise de 1929, dólares de uma indenização pela perda do Panamá
É a presidência de [Henrique] Olaya Herrera [1930-34]. Beneficiada também por uma curiosidade histórica. Como se sabe, no início do século XX a Colômbia perdeu o Panamá. Os Estados Unidos efetuaram uma secessão [em 1903]. Eles queriam ali na parte sul da América Central um país que fosse independente, para poder construir um canal com condições mais vantajosas.
Acontece que a Colômbia pediu uma indenização aos Estados Unidos pela perda daquilo que era um departamento – o equivalente a um estado, no Brasil. Por uma incrível coincidência, ou algo estranho que o destino armou, essa indenização foi paga à Colômbia no ano de 1929, uns dois meses antes que estourasse a Crise, a famosa Sexta-feira Negra, no final de outubro de 29.
A Crise de 29 arrebentou os países sul americanos. Na Colômbia isso não existiu, porque ela tinha um enorme encaixe em dólares. Quer dizer, a depreciação dos preços dos produtos de exportação – no caso colombiano, basicamente o café, o mesmo que acontecia aqui no Brasil – não afetou a capacidade de importação da Colômbia. Ela tinha os dólares.
Isso quer dizer que o governo de Olaya Herrera, que chega ao poder em 30, se depara com uma situação ruim na agricultura, mas financeiramente a Colômbia está tranqüila. Então, é possível aos presidentes liberais da década dos 30, Olaya Herrera e Alfonso López [Pumarejo], que governa de 1934 a 1938, efetuar aquilo que era o receituário contra a crise, quer dizer, intervenção do Estado, abrir estradas, fazer obras públicas.
E nos anos 30 a Colômbia não conhece a crise. De 1938 a 1942 mantém-se o Partido Liberal no poder, com a presidência de Eduardo Santos, dono daquele grande diário de Bogotá, o El Tiempo. Era o Estadão de lá. Era o grande jornal dos negócios.
Um golpe, divisão dos liberais
Em 1942, Alfonso López volta ao poder e, em 1945, um golpe o depõe. Esse homem era odiado pelo Partido Conservador, era realmente odiado. E esse golpe não tem muito a ver com interferência estrangeira, até porque em 45 os Estados Unidos estão eliminando na América do Sul aqueles que eles vêm como ligados ao nazifascismo. É o caso de Getúlio [Vargas] aqui, de [Juan Domingo] Perón na Argentina, que eles derrubam – só que Perón volta ao poder em 1946 por eleições.
Enfim, não é uma questão norte-americana. É uma questão interna, tanto que o Partido Liberal não perde o poder. Alfonso López, esse, perde. Ele é afastado do mandato, mas o período presidencial que pertencia aos liberais foi completado pelo vice. É uma espécie de parto indolor, uma cirurgia que, digamos, não causou muitos problemas. Mas em 46 tem início a tragédia colombiana. Por que a tragédia colombiana?
Porque é nesse momento que se definem uma série de processos que, em alguma medida, estão presentes até os dias de hoje. A partir do final dos anos 30, e principalmente dos anos 40, o Partido Liberal começa a sofrer uma pressão interna no sentido de se deslocar para a esquerda.
Em 1946, os liberais se dividem nas eleições. A pressão do deslocamento para a esquerda leva a uma outra candidatura. Os setores liberais mais tradicionais disputam a eleição com o nome de Gabriel Turbay e aquilo que, digamos, seria uma esquerda liberal vai disputar a eleição com [Jorge] Eliécer Gaitán.
Quais eram as questões básicas de Gaitán?
Os dois períodos presidenciais de López, assim como Getúlio tinha feito no Brasil e Perón na Argentina, haviam organizado o movimento sindical. Houve uma política intencional de sindicalização, de organização e de fortalecimento dos sindicatos nos sete anos de Alfonso López.
Gaitán propõe sindicalização rural e é assassinado
Eliécer Gaitán entra na arena política com uma proposta que é inaceitável para a oligarquia liberal, a sindicalização rural. A organização dos trabalhadores agrícolas.
Essa é uma questão curiosa. A Colômbia, de certos pontos de vistas, é um país atípico. A sindicalização não diz respeito muito ao café, porque o café colombiano, diferentemente do brasileiro, não é cultivado em grandes latifúndios. É cultivado no sistema de pequenas e médias propriedades, principalmente nas encostas dos morros e colinas da parte mais baixa dos Andes. Ali está o café. E ele é cultivado em pequenas e médias propriedades.
Pode-se ter – é uma questão complicada, entrar na estrutura agrária colombiana – indivíduos muito ricos por causa do café, mas por quê? Porque às vezes um mesmo indivíduo tem quatro, cinco, seis pequenas ou médias propriedades. Mas isso não significa que tem latifúndio. Então o café, por propriedade, emprega pouca mão-de-obra. É claro que a soma total dos que trabalham no café dá um número alto, mas por propriedade o número é pequeno.
A sindicalização rural não se refere, necessariamente, à mão-de-obra ocupada na produção cafeeira, mas sim em outras culturas agrícolas, inclusive dos latifúndios. E é por isso que a oligarquia liberal, que também é grande proprietária de terras, não pode aceitar esse projeto do Gaitán.
Dividido o Partido Liberal, os conservadores vão ganhar. É a presidência do Mariano Ospina Pérez [1946-50]. Aí já se vai entrar num contexto de Guerra Fria. E mantém-se aquela polarização entre conservadores e liberais que caracterizou a história da Colômbia. “O liberal é o demônio”. Pelo liberalismo, o comunismo vai pedir passagem. É essa a idéia.
O Bogotazo, em 1948, desata novo ciclo de violência
Em 1948 [9 de abril] há o assassinato de Gaitán e o Bogotazo, que são aqueles famosos três dias durante os quais as massas bogotanas ocupam a cidade, a ordem só é restabelecida quando unidades militares, de pontos diferentes do país, convergem sobre Bogotá, porque a guarnição militar de Bogotá e os efetivos policiais são derrotados pelo levante popular.
Eu acho até que uma parte da polícia aderiu…
A.C.P. – Pode ser. Eu não tenho esse dado, mas pode ser, porque havia uma certa organização liberal dentro da polícia. Agora, restabelecida a ordem, trata-se para o Partido Conservador de esmagar os liberais.
Os liberais acusam os conservadores de terem matado Gaitán. Os conservadores dizem que não foram eles. Dizem que foi a direita liberal, a que temia a sindicalização rural. Esse crime tenebroso e nefasto até hoje não foi desvendado.
O certo é o seguinte: terminado o Bogotazo, os dois partidos estão prontos para cair na jugular um do outro. Num contexto de Guerra Fria, 1948, os conservadores já têm um apoio, senão explícito e aberto, mas implícito dos Estados Unidos, que preferem, obviamente, um governo conservador.
E a guerra civil não declarada começa. Essa guerra civil que vai de 1948 a 1953 foi terrível. A estimativa é de 300 mil mortos. Morreu muito mais gente do que na guerra da Coréia, que ocorreu na mesma época, de 1950 a 53.
O senhor faz uma afirmação categórica sobre a condição de país mais violento que atribui à Colômbia. Eu acabei de ler uma história de Cuba que mostra violência contra os índios em um grau que eu não podia imaginar.
A.C.P. – Mas aí é coisa de espanhol, é colonial.
Sempre começa no colonial. Em seguida a violência em Cuba é contra os negros. Muito brutal.
A.C.P. – Mas veja o seguinte: a violência contra os índios na Argentina foi mais ou menos na mesma época da violência contra os índios nos Estados Unidos, anos 1860, 70, 80. E não se pode dizer que a Argentina seja um país violento, socialmente falando. Ela enfrentou momentos de repressão que foram extremamente pesados…
E houve violência dentro do peronismo em um grau estarrecedor…
A.C.P. – … Mas você não pode dizer que a Argentina, socialmente, seja um país violento.
Não, socialmente não é. Nem o Uruguai.
A.C.P. – Os índios uruguaios foram exterminados. Os negros não foram porque a Argentina não permitiu negros. Havia uma população negra na Argentina que, logo na época da independência, eles tiraram de Buenos Aires. O fato de haver grande violência no período colonial…
… É comum a todos os países ou a um grande número deles…
A.C.P. – Exatamente. E depois da independência, eles se acertaram entre eles, em alguns lugares. Nunca na Colômbia.
O que se tem hoje é mesma guerra. Acho que a imprensa não percebe que a Colômbia vive a mesma guerra desde a independência.
A.C.P. – Há muito tempo. Há um século e meio.
É até difícil mencionar alguns atos. Pegavam mulheres grávidas e explodiam a barriga, coisas que nos levam a pensar: “O que tem na cabeça desse sujeito?” E se vê isso no século XIX.
A.C.P. – As Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] não lançam botijões de gás contra aldeias, pequenas cidades? É uma história de louco.
Agora em nome da revolução. É uma coisa cambojana.
A.C.P. – Não é diferente do que o Sendero Luminoso fazia no altiplano peruano. As técnicas de massacre podem variar. Ali no altiplano é difícil encontrar botijão de gás, matavam de outra maneira, mas matavam.
Para Gómez, liberais e comunistas se equivalem
Em 1950, em meio a esse conflito, há eleições que são uma verdadeira patifaria e o Partido Conservador continua no poder por meio de Laureano Gómez [1950-51; Gómez tem um ataque cardíaco, passa a presidência para o vice, Roberto Urdaneta Arbeláez, mas continua a mandar]. Se Ospina, apesar de ser um assassino, era um homem um pouco mais equilibrado, Laureano Gómez não é, não.
Ele tem uma entidade sinistra no governo, um jesuíta confessor dele, com quem ele se confessa todo dia, porque ele é um católico fervoroso. Esse homem se chama Felix Restrepo. Acaba caindo nas boas graças de Laureano Gómez. E Restrepo não tem dúvidas: entre liberais e comunistas não há diferença nenhuma. É preciso matar todos.
E é nesse período, nessa guerra civil não declarada, que tem início a atividade das Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia]. Ela começa como uma guerrilha do Partido Liberal, de autodefesa dos camponeses que eram ligados às oligarquias liberais.
Eles têm que se defender. De arma na mão, vão ocupando algumas áreas do interior da Colômbia, de onde vem a idéia das repúblicas independentes, que foi o que caracterizou as Farc: ocupam um território e chamam esse território de República. E ficam ali. É um santuário, convergem para ali famílias de camponeses liberais e aquilo vai engrossando.
Bom, deixemos um pouco as Farc de lado. Depois chegaremos a elas.
Em 1953, o único golpe militar, e um acordo entre os partidos
Em 1953, nós vamos encontrar o único golpe militar da história da Colômbia, porque os partidos se pegavam, mas a capacidade de controle que ambos tinham sobre as diversas instituições do Estado era tal que as Forças Armadas não se moviam. Em 53, no meio da guerra civil não declarada, quando a coisa chegou a um ponto limite, aí se tem o golpe.
Um dado interessante: a Colômbia foi o único país na América Latina que atendeu ao apelo norte-americano, disfarçado de apelo da ONU, e mandou contingente militar para a Guerra da Coréia. Mandou o efetivo de uma brigada. Eu até já procurei em diversos textos sobre a Guerra da Coréia um relato, uma avaliação do desempenho dessa brigada, mas nunca encontrei nada.
O golpe instaura a ditadura de [Gustavo] Rojas Pinilla. Essa ditadura dura pouco, porque em 1957, mais ou menos na mesma época que os partidos venezuelanos assinaram o acordo de Punto Fijo, os dois partidos colombianos chegam a um entendimento.
Esse entendimento se dá, obviamente, em primeiro lugar, na direção da derrubada de Rojas Pinilla, perfeitamente factível porque com os dois unidos não há o que resista.
Rojas Pinilla cai e em 58 haverá eleições com uma emenda constitucional que foi o ponto de acordo deles. Durante dezesseis anos, aderiram à alternância no poder, ou seja, primeiro concorreriam os liberais e, nesse caso, os conservadores não lançariam candidatura. Em 1962, os conservadores, e os liberais não lançariam candidatura. E assim sucessivamente.
É Alberto Lleras Camargo [1958-62], um homem importante porque foi, junto com Juscelino [Kubitschek], um dos coordenadores da Aliança para o Progresso, nomeado por [John] Kennedy. Depois é Guillermo León Valencia [1962-66]. Depois é Carlos Lleras Restrepo [1966-70], sobrinho de Alberto Lleras Camargo, ou seja, oligarquia familiar liberal.
E na última eleição houve um racha no Partido Conservador. Os conservadores não conseguiram se unificar e, além disso, mesmo que os liberais não apresentem candidatura, Rojas Pinilla disputa a eleição. Há dois candidatos conservadores e Rojas Pinilla. Os candidatos conservadores são Belisario Betancur e Misael Pastrana Borrero, pai desse rapaz que foi presidente da Colômbia entre 1998 e 2002, Andrés Pastrana.
Misael Pastrana ganhou a eleição em 1970. Dizem as más línguas que quem ganhou mesmo nas urnas foi Rojas Pinilla, porque a população estava de saco cheio da malandragem. Quando o período é de um, o outro concorda. “Mas que esculhambação é essa? Que partidos são esses?”
E Rojas Pinilla tinha feito alguma coisa no governo que acabou angariando popularidade para ele, todo esse movimento vai dar depois no M-19, Movimento 19 de Abril, que acabou indo para a guerrilha…
A.C.P. – Rojas Pinilla concorreu por uma legenda chamada Anapo, Aliança Nacional Popular, e tinha uma filha que era um gênio do marketing, Maria Eugenia Rojas Pinilla, eleita senadora nessa eleição. Tinha coisas extraordinárias. Ele ia para o comício, tirava uma cenoura do bolso e dizia: “Vocês estão vendo isso daqui?”; “É uma cenoura”, todo mundo gritava; “Vocês se lembram de quanto a cenoura custava no meu governo?” Custava, obviamente, muito menos. “Pois eu garanto a vocês que ela vai voltar a custar a mesma coisa”. Parecia coisa de Jânio Quadros.
A guerrilha começa liberal e se torna marxista
Nesse período, a guerrilha, que era liberal, se firmou. Firmou-se, inclusive, porque nenhum dos dois partidos no poder, apesar do anticomunismo virulento e violento dos conservadores, desenvolve uma estratégia de enfrentamento. A guerrilha liberal vai se transformar nos chamados Grupos de Autodefesa Campesina. Já constituem um afastamento em relação ao Partido Liberal. Eles agora são autônomos e independentes. Não quer dizer que tenham se ligado ao Partido Comunista, porque o Partido Comunista na Colômbia, como em vários outros casos na América Latina, é um partido essencialmente urbano.
Esses grupos guerrilheiros vão se firmando nas suas zonas chamadas de libertação, Repúblicas Independentes, e vão sofrendo um giro ideológico. A Revolução Cubana ajuda muito também nesse sentido. Eles vão se tornando marxistas, ou marxista-leninistas, como queira. Mas eles têm uma diferença sensível em relação aos outros grupos guerrilheiros: não têm uma estratégia de tomada do poder. Eles só enfrentam as Forças Armadas quando as Forças Armadas vão para cima deles. Eles não saem de suas zonas independentes. O que é o caso até hoje.
Mas voltemos aos anos 70.
López Michelsen, a grande frustração
Por enquanto, não vai existir realmente um problema do narcotráfico. O narcotráfico começa nos anos 70. Em 74 rompe-se o acordo da alternância, mas não isso significa que conservadores e liberais voltem a ser inimigos como eram antes. A primeira eleição, de 74, vai levar ao poder um filho de Alfonso López, Alfonso López Michelsen.
Essa foi a grande frustração colombiana, porque esperava-se que o indivíduo tivesse o ardor do ancestral dele, mas não fez nada. No final do governo dele, Gabriel García Márquez colocou uma porção de retratos do dito cujo nos muros não sei se de Bogotá ou de Cartagena, com a seguinte inscrição: “Procura-se esse homem como ladrão. Ele fugiu com cinco milhões de votos dos colombianos”. É monumental.
Em 1978, novamente os liberais carimbam, com Julio César Turbay Ayala [1978-82]. Aí já se começa a ter um problema grave com o narcotráfico. É uma questão que tem mais a ver com as drogas. O dado básico é o seguinte: como a demanda norte-americana estava aumentando, ela se aquece desde o final dos anos 60, a Bolívia não dava conta sozinha dessa demanda, os traficantes que operam nos Estados Unidos recorrem à Colômbia.
Já havia uma tradição de ingresso de marijuana colombiana – a Colômbia sempre foi uma grande produtora de marijuana, maconha – nos Estados Unidos. Pegavam ali rumo ao norte, entravam no Golfo do México e jogavam aquilo em qualquer um dos estados que se abrem para o Golfo do México.
É nos anos 70 que a Colômbia começa a produção de cocaína.
País privilegiado… Quando rebenta, no início do governo Reagan, a chamada crise da dívida externa, a Colômbia é a única que sai incólume, não tem dívida externa. O encaixe em dólares do Banco Central colombiano é tão volumoso, por causa do narcotráfico, que acumulou narcodólares, que a Colômbia novamente não é afetada pela crise.
Em 1929, ela tinha o encaixe de dólares pagos pela indenização relativa à perda do Panamá. Em 1981, as autoridades econômicas adotam a sábia medida de aceitar depósitos em dólares sem perguntar a origem. Entrava-se num banco com uma maleta de cinco milhões de dólares e ninguém perguntava nada. “Pronto, está registrado. O senhor tem uma conta aqui com cinco milhões de dólares, convertido em tantos pesos”.
Assim, o Banco Central ficou abarrotado de dólares. É claro que crise da dívida não era problema para a Colômbia.
Em 1982, outra eleição, ganha Belisario Betancur [1982-86]. Conservador, mas aí não há mais problemas: eles não são mais inimigos. O acordo chega a um ponto tal que em departamentos controlados pelos liberais uma parte do governo é dada aos conservadores, e vice-versa.
A alternância acabou, no sentido de que agora os dois partidos apresentam candidatos, mas não há discriminação política quando um deles chega ao poder. E as coisas vão seguindo, mas em que sentido e direção?
Começa a repressão americana às drogas
Primeiro, o narcotráfico vai aumentando a sua força dentro da Colômbia. Rapidamente, a Colômbia vai se transformando na grande fornecedora de cocaína para os Estados Unidos. E é também quando começa uma política de repressão maior ao narcotráfico dentro dos Estados Unidos. É quando a DEA [Drug Enforcement Administration, agência de combate às drogas dos EUA] começa a receber mais verba, mais efetivo humano, e é quando o narcotráfico colombiano começa a desenvolver um sistema mais tentacular, diversifica sua zona de produção na Amazônia peruana, entra no Peru. E, ao mesmo tempo, contacta as quadrilhas mexicanas de atravessadores de fronteira. Alguns desses, ao invés de transportar imigrante ilegal, passam a transportar cocaína. Até que a bandidagem mexicana descobre que, ao invés de virar mula de colombiano, é muito melhor eles mesmos produzirem. É essa a história.
Que agora está violentíssima. Essas quadrilhas mexicanas são poderosíssimas.
A.C.P. – Claro, rola mais dinheiro no México do que na Colômbia. Mas a lógica da história é essa: é a Colômbia que ativa o México, dá uma pilha no México. E joga o Peru também na zona de produção.
Então, ao mesmo tempo em que o tráfico colombiano vai se tornando mais forte e vai formando os seus cartéis, as Farc não são estranhas a isso, porque uma parte da cocaína vai ser produzida em áreas próximas às delas. É um momento também de florescimento das Farc, elas entram no circuito financeiro do narcotráfico. Claro que aí as coisas se tornam mais fáceis: armas, instrumentos financeiros mais sofisticados.
Eu conheço uma pessoa que visitou uma área das Farc. Ele diz o seguinte: se você pensa que tem muito arsenal de armas, não, são enormes barracas abertas dos lados, com mesas coladas umas às outras, cheias de computadores, que é para olhar Wall Street, Tóquio, Londres. Estima-se que a arrecadação anual das Farc com esse negócio é de quatrocentos, quinhentos milhões de dólares. É muito dinheiro.
É nos anos 80 que se começa a armar o novo ciclo vicioso da violência colombiana. Porque de um lado se tem o fortalecimento das Farc, e o fortalecimento do narcotráfico, mas ao mesmo tempo se tem a formação das AUC [Autodefesas Unidas da Colômbia]. São os paramilitares. E no norte, o ELN, Exército de Libertação Nacional.
Cuba organiza desembarque de guerrilheiros na Colômbia
Nesta altura é preciso falar M-19.
O M-19 se torna uma coisa castrista, cubana. Organizaram, inclusive, uma invasão na Colômbia, um desembarque de núcleos guerrilheiros na Colômbia.
Uma vez na França eu tive um encontro com o então secretário geral do Partido Comunista Colombiano, Gilberto Vieira. Essa reunião ocorreu logo depois do malfadado desembarque do M-19… Gilberto Vieira estava furioso com essa história. Ele disse o seguinte: nem sequer a direção do partido foi avisada de que isso iria ocorrer. É quando o conflito entre os partidos comunistas da América Latina e Cuba estava no seu ponto máximo.
Os cubanos aprontaram muito…
A.C.P. – O que essa gente perturbou a trajetória na América Latina…
Eu acho que isso, na recapitulação histórica, não está coberto pela anistia. Tem anistia para os atos violentos, para crimes, e anistiaram até os torturadores. Mas na reconstituição histórica, não deve haver. É preciso discutir abertamente. Tudo isso teve conseqüências muito negativas, muito graves.
A.C.P. – É uma triangulação perversa, porque eles faziam isso com o dinheiro que a União Soviética dava a Cuba, e a União Soviética apoiando os Partidos Comunistas, incitando-os a dizer não à luta armada.
É verdade. É o óbvio de que pouco se fala.
A.C.P. – Que triangulação mais miserável existiu na política de esquerda latino-americana. Coisa de louco.
(Transcrição de Raiana Ribeiro.)
Leia também a segunda parte da entrevista de Antonio Carlos Peixoto, ‘Na Colômbia, a dramática associação entre guerrilha e drogas‘. E mais:
“Decomposição política da Venezuela antecede Chávez”
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