Do colunista Clóvis Rossi, na Folha de hoje:
“Não vejo nenhum capanga armado obrigando o telespectador (ou leitor) a ficar sintonizado nos programas policialescos ou, agora, no noticiário sobre a menina morta. Há público – e grande – para isso. Alguns são apenas portadores da normal curiosidade humana. Outros têm gosto de sangue na alma, não nos iludamos.”
Sim e não.
Sim para o gosto de sangue de tantos.
Não para a necessidade do capanga armado.
A tese – formalmente verdadeira – de que ninguém é obrigado a ver ou ler seja lá o que a mídia mostre ou escreva deixa de levar em conta os poderosos mecanismos de indução, na própria mídia e na sociedade, para que se veja ou leia o que a mídia e os formadores de opinião entre os espectadores e leitores consideram um imperativo social.
Desinteressar-se pelo noticiário sobre a menina morta acaba sendo visto nos ambientes em que o desinteressado frequenta e que lhe abrem as portas da integração social – família, trabalho, escola, vizinhança, círculo de amizades – como uma esquisitice, ou, pior, um desvio de caráter: que raio de pessoa é essa que não liga a mínima para tamanha monstruosidade?
Quem fica na contramão do interesse avassalador daqueles com os quais convive ou se relaciona passa a imagem de que “não é bom da cabeça ou doente do pé”. E muitíssimo poucos não se importam de ser vistos assim.
É como se formam e operam as pressões conformistas, germes das ditaduras da maioria, engendradas e sancionadas pela mídia.
Da mesma forma que na economia e ao contrário do que parece, não é a procura que cria a oferta, mas o contrário. Batendo quase o tempo todo numa mesma tecla – e quando essa tecla, o assassínio de uma criança, presumivelmente pelo pai, ressoa como raras outras que se possam imaginar -, o espetáculo de som e fúria da mídia de massa fabrica um mercado de consumo do qual só não se participa ao preço da reprovação social.
E a participação vai além de se manter antenado no caso. É engrossar a multidão que desde a primeira a hora foi convencida pela aliança espúria da polícia e da imprensa a acreditar que as coisas se passaram exatamente como a primeira diz e a segunda repassa.
”Foram eles”, berra a imprensa de esgoto. E quem ousará observar aos parentes, colegas, amigos e vizinhos: “Peraí. Vamos esperar o que a Justiça vai dizer”?