Uma cidade e um cidadão, reivindica Jailson de Souza e Silva, professor universitário que coordena o Observatório de Favelas do Rio de Janeiro (www.observatoriodefavelas.org.br). Ele não aceita a divisão, implícita nas propostas de remoção de favelas, entre uma cidade formal e uma não-cidade, favelada. Diz que a guerra entre traficantes na Rocinha, em abril de 2004, foi um divisor de águas a partir do qual os moradores de favelas passaram a ser vistos como “população civil do exército inimigo”.
O professor estabelece um nexo entre a política de confrontação bélica dos grupos armados, que tem vinte anos, e o discurso atual da remoção. Reivindica uma política de desarmamento dos grupos criminosos, não de uso da violência. Critica a abordagem da questão das favelas feita pela imprensa, especificamente pelo Globo. Censura os três níveis de governo que agem no Rio de Janeiro. Diz que a classe média aceita cada vez mais a idéia de que as vidas têm valores diferentes.
“Quando morreram 29 pessoas na Baixada Fluminense não tivemos um só dia de luto. E o papa teve sete”, constata. ‘Lula levou dois aviões para Roma e nem passou aqui para o enterro de uma das vítimas. Foi o maior massacre da história do Rio de Janeiro, feito por forças policiais”.
Jailson é formado em Geografia e tem doutorado em Educação. Dá aulas na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Morou boa parte da vida na Favela da Maré, no Rio, e mora hoje em Niterói, onde fica a universidade. Ele anunciou o lançamento, no fim do mês, do livro Favela, alegria e dor na cidade, elaborado pelo Observatório de Favelas, onde políticas públicas baseadas na lógica da inclusão, não da divisão, são discutidas.
A seguir, entrevista de Jailson de Souza e Silva concedida na tarde de terça-feira (8/11).
Como o senhor avalia a cobertura do tema favela e habitação popular na imprensa? Em setembro, o Globo começou uma série cuja tônica aponta na direção de se voltar à política de remoção de favelas.
Jailson de Souza e Silva – A grande imprensa tem se baseado numa discussão muito parcial do problema. Primeiro, apresenta muito pouco as alternativas de política habitacional para os setores populares que foram construídas historicamente no Brasil, no Rio de Janeiro e em outras cidades. Apresenta-se a questão ambiental de modo absolutamente parcial. Um exemplo concreto é a degradação ambiental da Barra da Tijuca, que não é provocada só pelas favelas, mas também pelos grandes condomínios.
A vinculação entre pobreza, violência e degradação ambiental, e daí a necessidade de remover, é apresentada numa perspectiva muito mais ideológica do que informativa. É um lado, um determinado setor da sociedade, que se coloca e que termina não considerando outros direitos fundamentais no plano constitucional.
A sensação que dá é que os moradores de favelas são simplesmente invasores que ocuparam terrenos de forma arbitrária. Isso sem considerar todo o processo histórico de constituição da cidade do Rio de Janeiro e como é que os setores populares foram se constituindo dentro dessa cidade. Isso é completamente ignorado nos debates. Agora começou a melhorar.
O senhor disse que o Globo fez uma seleção unilateral das cartas sobre o assunto.
J.S.S. – Certa vez, quando o Globo apresentou um jovem criminoso que tinha sido preso e espancado pela polícia, botou 26 cartas de leitores criticando aquela postura do jornal. E o jornal assumiu uma posição editorial clara de que era impossível conviver com esse tipo de violência, que se tinha que respeitar o direito à legalidade.
Nessa questão das remoções, ao contrário, o Globo apresentou durante semanas apenas cartas criticando a presença das favelas nessas áreas nobres, criticando a presença desses moradores, defendendo a remoção, a punição, o rigor, a ordem, reforçando, portanto, a linha editorial do jornal, sem discutir os direitos fundamentais – direito à habitação, ao trabalho, à circulação, à educação, à cultura, a sua própria identidade histórica.
E isso me parece profundamente antiético em termos de cobertura jornalística. Vários pesquisadores do Observatório de Favelas tentaram inclusive apresentar outra versão, mandaram cartas, mandaram e-mails, e nenhum foi publicado. Isso me parece que não dá espaço ao contraditório, não dá espaço ao debate, termina assumindo uma linha claramente política, e o jornal perde toda a sua capacidade de informação. Eu falo do Globo porque foi o grande jornal que mais motivou esse debate.
Mudou a percepção da favela pela classe média?
J.S.S. – Existe hoje no Rio de Janeiro, por causa do grau de insegurança e de insegurança – o grande marco foi a guerra da Rocinha, em abril de 2004 – um discurso em que cada vez mais a população da favela é vista como a população civil do exército inimigo.
Até um determinado sentimento, surgido na década de 1990, de que a população da favela era refém do tráfico, um grupo criminoso armado que impunha o terror, hoje mudou. O sentimento agora é de intolerância, de insatisfação. Várias vezes eu vou a debates, apresento a situação histórica, as contradições, como a população das favelas também é vítima desse processo, principalmente da lógica de enfrentamento da criminalidade com uma guerra às drogas, que aumenta ainda mais a violência, e mesmo assim no final alguém fala: “Mas o problema é que a pobreza gera violência, então tem que remover as favelas. Tem um monte de espaço vazio na periferia, tem que remover as favelas porque isso diminuiria a violência”.
É uma lógica absolutamente centrada a partir da perspectiva dos setores médios. Nós fomos a um programa Sem Censura [da TV Educativa do Rio de Janeiro], sobre um documentário que fizemos chamado Até quando?, e tanto a Leda Nagle [apresentadora] como o Márcio Mothé, um promotor, disseram que a coisa mais natural é o Caveirão, o blindado [da Polícia Militar] entrar dando tiro dentro da favela. Não querem considerar, por exemplo, que na Favela da Maré, onde o Caveirão entra com freqüência, moram 23 mil pessoas por quilômetro quadrado. Um carro blindado que tem 12 homens dentro, não tem nenhum espaço para prender alguém, não entra para prender, entra simplesmente para o confronto, obviamente isso vai colocar em risco, como invariavelmente acontece, os moradores da própria comunidade. Isso não é discutido. Por quê? Porque nós somos vistos como a população civil do exército inimigo.
Existe, portanto, uma conexão entre as políticas de segurança pública adotadas nas últimas décadas e o sentimento atual em face das favelas?
J.S.S. – Essa forma de confrontar grupos criminosos armados com mais violência, poder bélico, se cristalizou na sociedade carioca, e dentro disso a favela passa a ser identificada com a violência e a remoção passa a ser a palavra de ordem.
Na visão do Observatório de Favelas, que tipo de discussão deveria começar a ser realizada de uma maneira mais inteligente?
J.S.S. – Nós vamos lançar no final do mês um livro – Favela, alegria e dor na cidade – em que esses temas são discutidos. O primeiro pressuposto com que trabalhamos, e que deveria estar pautando esta discussão, é o de que as favelas constituem a cidade. Não existe a cidade formal e a não-cidade, que seria a favela. A identidade social do Rio de Janeiro é pautada também pelos moradores dos espaços populares. A imagem do malandro, da mulata, do futebol, do carnaval é muito marcada por esses personagens. Reconhecimento, portanto, de que os moradores das favelas são cidadãos.
Segundo princípio: só pode existir uma cidade, um cidadão. Toda a discussão de ordenação do espaço da cidade deve passar pela idéia de que os direitos de todos os cidadãos devem ser respeitados, e os deveres também. Por exemplo, não consideramos razoável que haja gato, ligações irregulares de energia elétrica, dentro das favelas. Achamos que deve haver uma política de tarifa social, tanto para a energia como para água, IPTU, etc.,mas não tem como acatar essa forma de ilegalidade, não tem sentido. É inadmissível também que haja homens armados, grupos criminosos armados dentro das favelas. A polícia tem que ter uma ação de desarmamento desses grupos, recuperar a soberania sobre todo o estado, porque isso atinge a todos nós.
Ter uma política de segurança urbana que valorize a vida seria o central. O eixo fundamental tem que ser o combate ao comércio de armas e na desarticulação dos grupos criminosos armados, não necessariamente o tráfico de drogas – você pode ter outro tipo de trabalho, de prevenção, como é feito no resto da cidade, e isso já diminui muito a sensação de insegurança e a violência. Nós achamos que uma sociedade e uma imprensa comprometidas com os direitos humanos e com a democracia deveriam ter isso como referência.
A imprensa entrou numa linha unilateral?
Também é papel de uma imprensa democrática dar direito a todas as proposições. Nessa discussão está se dando muito mais espaço para a remoção, termo absolutamente impróprio, acintoso, porque se removem coisas, não se removem pessoas. “Remover”, remover problemas, tratar os espaços populares como problemas já tem como pressuposto um paradigma da ausência da negação, da carência e principalmente de ser ver os cidadãos das favelas como não-cidadãos, o que ofende muito a democracia.
Fui a um debate no Globo onde eu deveria ser uma das partes, haveria uma posição a favor da remoção e outra contra. Chego lá, eles apresentam três visões. Era como se eu tivesse uma fala extremada contra a remoção e houvesse outra fala, amena, a favor da remoção, e outra absolutamente radical, defendia inclusive cercar a favela de muros. Quando não verdade havia duas visões, não três.
Até aqui o senhor está mais no plano do enunciado de direitos que não são respeitados, não são às vezes nem sequer cogitados. Que idéias e projetos poderiam ser adotados na prática?
J.S.S. – No capítulo 4 do livro apresentamos uma série de propostas de habitação, saúde, educação, cultura, segurança urbana, com os pressupostos que já comentei.
O eixo fundamental da política de habitação, por exemplo, é que ela não pode ter uma solução única. É preciso levar em conta as demandas dos moradores, as condições de oferta de infra-estrutura da cidade – aproveitar para isso espaços e áreas que estão em obsolescência, como no Centro, na Avenida Brasil, na Avenida Suburbana e outros mais. Principalmente têm que ser levados em conta os interesses dos moradores.
Um exemplo bem banal: aqui na Maré se fizeram três grandes assentamentos na década de 1990. Foram cerca de 2 mil domicílios, para populações que moravam nas ruas e em áreas de risco. Todo mundo que mora num espaço popular sabe da importância da laje. A laje serve como reserva de valor. Você pode vender o direito de alguém morar em cima, pode vender um, dois andares, também diz respeito ao direito de herança, e ainda é área de lazer, você bota uma piscina, uma churrasqueira, etc. A Rocinha uma vez elegeu a “Miss Laje”. Todos esses projetos são tão autoritários que não permitem laje. A lógica do arquiteto é que o projeto não pode ser violado. Você poderia ter no mínimo pelo menos mais 8 mil domicílios só na área da Maré, e com isso cerca de mais 40 mil pessoas.
A política habitacional tem que ouvir a população, buscar formas alternativas, jamais partir para grandes empreendimentos, como Nova Sepetiba, na Zona Oeste, um verdadeiro absurdo. Simplesmente conseguiu-se a seguinte façanha: o filme Cidade de Deus, para retratar uma realidade de 40 anos atrás, foi filmado lá. Para se ver como é uma coisa atrasada, anacrônica. Um empreendimento que começou há menos de cinco anos…
Não se trata simplesmente de concessão de moradias, mas de se pensar uma ação integrada no território.
Na Maré se fez uma Lona Cultural. Lona, mesmo. E fica na fronteira onde agem dois grupos armados. Simplesmente, essa lona já está toda furada de bala. E está se fazendo ao mesmo tempo, na Barra da Tijuca, onde moram 160 mil pessoas, uma Cidade da Música que custa 150 milhões de reais.
Qualquer projeto para se pensar a cidade tem que levar em conta como é que se promove o encontro das diferenças, como se aproximam as pessoas, e não se afastam. Hoje há maciças inversões de recursos públicos nas áreas nobres e o mínimo social nos espaços populares.
Se a Cidade da Música fosse feita na Avenida Brasil, onde circulam milhares de pessoas, onde todo mundo tem acesso em vinte minutos, se estimularia muito mais a reterritorialização dessa área da periferia e um encontro muito maior.
Teria que haver um projeto com eixo no encontro das diferenças e tratar diferentemente os desiguais. Maciços investimentos em áreas periféricas, onde pudessem ser criados canais de encontro do conjunto da população. Sem deixar, obviamente, de ter os cuidados devidos no conjunto da cidade.
Oual é sua crítica à abordagem feita hoje pelos poderes públicos?
J.S.S. – Tem que ser junto com o estado e com o governo federal. O que nós temos no Rio de Janeiro e em outros estados é uma vergonha: uma política cultural, educacional, de saúde de cada instância federativa. Não se consegue integrar. Basta ver a recente briga na saúde. A falta de qualquer tipo de sintonia entre município e estado na educação. No campo da segurança urbana e da habitação, a mesma coisa. É um desperdício absurdo de recursos. Esse é um desenho fundamental. Obviamente, diante da estreiteza política dos grupos que temos no poder, seja no poder federal, seja no estadual, seja no municipal, que expressam três projetos distintos, mas nenhum dos três republicanos, temos como característica a cidade nessas condições atuais. Deveríamos ter uma política integrada dos diferentes entes federativos, da sociedade civil e do mercado.
A classe média do Rio, de São Paulo, de tudo quanto é canto, ainda não reconheceu o povo como igual. Serve para ser polícia, gari, o que se queira…
J.S.S. – … Serve para ser empregada, empregadinha que dá iniciação sexual aos meninos, como era antigamente…
… Mas igual, como o mesmo direito de voto, de voz…
J.S.S. – … Com o mesmo acesso a dinheiro público…
… Isso não entra na cabeça das pessoas, vai ser uma batalha de muito tempo ainda. Mas já está avançando…
J.S.S. – Não, eu acho que está piorando. Sou mais pessimista. Nos últimos anos, porque a classe média está muito pauperizada, com muito problema, ela se particularizou cada vez mais, e se presentificou cada vez mais. Só pensa na questão do consumo. Como o consumo é referência fundamental, se estabelecem hierarquias sociais e a vida passa a ter cada vez menos valor.
Um motorista de táxi me disse uma vez, quando morreu uma menina rica de São Paulo, de 16 anos, adolescente… Eu falei: todo dia no Brasil morrem 16 adolescentes. E ele: “Mas são pobres, né? Pobre está acostumado. O problema é quando é menina rica, cuidada…” Isso é um pensamento muito generalizado. O sujeito vira para mim e fala: “O problema é que os pobres, lá, os favelados, fazem filho igual ratos”.
Quando morreram 29 pessoas na Baixada Fluminense não tivemos um só dia de luto. E o papa teve sete. Um presidente de origem popular, uma governadora que tem uma base popular grande, não decreta um dia de luto para 29 pessoas assassinadas por forças do Estado. Perguntei num artigo, na época: “E se fosse no Leblon, executivos que estivessem na rua, jovens senhoras, o garoto surfista louro que estava indo para a praia, será que teríamos o mesmo impacto?” Será que não teríamos uma intervenção aqui, um impacto internacional muito maior? Lula levou dois aviões para Roma e nem passou aqui para o enterro de uma das vítimas. Foi o maior massacre da história do Rio de Janeiro, feito por forças policiais.
As hierarquias sociais estão estabelecidas de uma forma tal que as vidas de uns valem muito menos, e cada vez menos. Por isso eu disse no início: só pode haver uma cidade e um cidadão. Se isso não for pressuposto na política pública, vamos continuar com os mesmos problemas.