Critérios éticos pouco rigorosos e falta de discernimento político fizeram a Época da semana passada dar uma contribuição notável para a saída do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e para a demissão do presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Mattoso. Mattoso acabou de dizer na Polícia Federal que entregou pessoalmente a Palocci o extrato bancário de Francenildo Costa.
É claro que Palocci se afasta pelo “conjunto da obra”. Se ele não tivesse se metido em confusões, até as diferentes alas do PT que condenam a política econômica teriam ficado quietas, de olho no processo eleitoral. A oposição só se mexeu nas etapas finais, quando apareceu o caseiro Francenildo disposto a relatar o que tinha visto na mansão da “República de Ribeirão Preto”.
Vários atores podem reivindicar um papel destacado nas agruras vividas pelo ministro. Entre eles, jornais e revistas que veicularam denúncias ou contestaram negativas oferecidas por Palocci.
Mas ninguém conseguiu nada parecido com a Época. O Estadão publicou a decisiva entrevista de Francenildo. Mas o caso da Época é ímpar e seria cômico se não estivesse inserido no contexto de uma grande tragédia da república brasileira.
A revista publicou a violação do sigilo bancário do caseiro, algo que não poderia ter sido obtido de forma legal ou legítima. Depois de ter obtido da testemunha a confirmação do dinheiro na conta e a informação de quem o fizera, seu pai biológico. Ainda assim, a Época violou a ética numa reportagem que sugeria a possibilidade de que Francenildo tivesse sido subornado para delatar Palocci.
Isso aconteceu primeiro na estréia do blog da revista, às 18h45 do dia 17 de março. E se confirmou no dia seguinte, quando circulou a edição número 409 da revista.
Não importa, nesta discussão, quem entregou o documento à revista. Isso é ainda algo a apurar. Pode ter sido, como circulou em Brasília, um repórter, Matheus Leitão, que o teria recebido de Marcelo Netto, então assessor especial de Palocci. Matheus é filho de Marcelo. Essa versão foi divulgada em letra impressa por Diogo Mainardi na edição desta semana da Veja. Marcelo Netto tem negado, em conversas reservadas ter sido dele a iniciativa. É o que registrou nos últimos dias a Folha de S. Paulo.
Mas uma coisa era certa: alguém da estrutura de comando da Caixa Econômica Federal, banco estatal subordinado ao Ministério da Fazenda, ou da Polícia Federal, que havia ficado com os documentos do caseiro, entre eles o cartão da Caixa, fora o responsável pelo vazamento. E isso a revista não poderia ter ignorado.
A Época ignorou também que teve nas mãos o maior furo deste ano (até aqui): teria sido exatamente a denúncia da perfídia cometida contra a testemunha. A revista poderia ter sido conscientemente co-responsável pela queda de Palocci, chefe do presidente da Caixa Econômica. Foi involuntariamente responsável pela onda de indignação que varreu o país e levou o ministro.
No dia seguinte, 18 de março, o Jornal da Globo, que, como a Época, pertence às Organizações Globo, preferiu valorizar a indignação com a agressão aos direitos do caseiro:
“Em entrevista, Francenildo explicou que os depósitos – no valor de R$ 25 mil – foram feitos por seu pai biológico, um empresário do Piauí, como forma de compensá-lo pelo não reconhecimento da paternidade durante anos. No Piauí, o empresário confirmou os depósitos e disse que não assume a paternidade por questões de família. A mãe e a irmã de Francenildo também confirmaram que o empresário é o pai do caseiro. [Essas informações a Época teve no dia anterior, quando a edição da revista foi fechada.] Francenildo protestou contra a quebra ilegal do seu sigilo bancário, e exige que as autoridades apurem o que aconteceu. ´Só estou indignado como isso saiu na imprensa´, pergunta o caseiro [sic para a transcrição da fala no site do Jornal da Globo]. Em Brasília parlamentares de oposição cobraram explicações do governo”.
No dia 21, terça-feira, o Globo publicou:
“BRASÍLIA. A quebra ilegal do sigilo bancário do caseiro Francenildo Santos Costa, que contradisse o ministro Antonio Palocci, deixou ontem o Congresso em pé de guerra. No plenário do Senado, aos berros, oposição e governo trocaram acusações e juras de vingança. O dia terminou com uma batalha de requerimentos. O PT surpreendeu ao anunciar um pedido de quebra de sigilo bancário do caseiro, violado sem autorização judicial. O PSDB respondeu solicitando a quebra do sigilo do filho do presidente Luiz Inácio Lula da Silva Fábio Luis Lula da Silva, cuja empresa recebeu aporte de R$ 5 milhões da Telemar.
O líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio (AM), anunciou que pedirá ao Ministério Público Federal que investigue a quebra de sigilo do caseiro. Seu extrato, publicado na revista “Época”, foi retirado no momento em que Nildo, como é conhecido, estava no prédio da Polícia Federal para entrar no programa de proteção a testemunhas”.
Tudo isso remete à qualidade da cobertura de política que se tem hoje no país (desde a apuração até a edição). É uma discussão indissociável do exame da própria crise política.
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Adendo em 28 de março. Reúno aqui respostas dadas a comentários de leitores. Creio que servem para esclarecer melhor o que foi escrito acima.
‘Eu não disse que não há corporativismo na imprensa. Há, e muito. O que não se pode aceitar são acusações genéricas.
# A Época ajudou a derrubar Palocci prestando-se a uma manobra cuja intenção era favorecê-lo, desmoralizando o caseiro.
# Muitos veículos das Organizações Globo cumpriram corretamente seu papel de informar e participaram do esforço para denunciar a violação dos direitos do caseiro. Cito os três mais importantes: TV Globo, o Globo e Rádio CBN. A crítica foi feita especificamente àquela edição da revista Época.
Aqui, é necessário reproduzir o comentário do leitor, Jaiel de Assis Lopes:
“Prezado colunista, acho que o Diogo Mainardi tem sido mais honesto que a maioria de seus colegas pois ele é inimigo declarado do governo Lula e da esquerda, sem nenhuma dissimulação. O papel de qualquer inimigo é combater com todas as armas e, para qualquer pessoa que sofre o ataque, é bom saber quem é o inimigo. No caso do restante da mídia brasileira que tenta se declarar imparcial, é o tipo de inimigo mais perigoso que o povo tem que enfrentar e desmascarar. Na verdade se enquadram na pequena reportagem da Folha sobre o Sr. Alckmin que é o ordenador de uma conta de vinte e cinco milhões para publicidade. No caso da reportagem da revista Época o repórter conseguiu saber o conteúdo do documento da mesma forma que a imprensa consegue suas informações, mesmo a contragosto dos detentores desta informação. O editor é que autorizou a publicação da matéria e o objetivo foi atingir o caseiro ou o governo Lula? Jornalistas experientes sabem onde querem chegar e que objetivos pretendem atingir e a Época atingiu seus objetivos iniciais, o tempo dirá se realmente todos os objetivos foram atingidos. Quanto ao Diogo Mainardi, é bom ter inimigos desse tipo pois assim saberemos quem nos podem ferir. Quanto ao restante de seus colegas, precisamos ter muito cuidado”.
# Não se trata de culpar a Época pela queda de Palocci. Trata-se de dar à Época o que é da Época. Evidentemente, Palocci e Mattoso e tutti quanti não caíram por causa da Época. Mas a denúncia contra o caseiro publicada pela revista sem questionar a legalidade e a legitimidade dos métodos usados para obter o extrato bancário teve um papel relevante, e não deve ser negligenciada. A razão é metodológica. Não se trata de ser palmatória do mundo. Como dizia aquele personagem, “sem chance”. Cabe aproveitar cada episódio para refletir sobre métodos, limites, e principalmente, do meu ponto de vista como cidadão, para pensar politicamente. A mídia faz política o tempo todo e deve fazê-lo o mais conscientemente possível. Nos jornais e revistas, sem qualquer tipo de balizamento a priori. Quem comete delito deve ser processado. Na televisão e no rádio, que são concessões públicas, a discussão muda de figura. Deve haver uma fiscalização melhor em benefício do maior grau possível de isenção política.
A ‘pequena reportagem’ da Folha derrubou um secretário de estado de São Paulo.
# Vários jornalistas escreveram que Marcelo Netto é jornalista e eu escrevi que não é jornalista. Quer dizer, na qualidade de assessor de ministro não é jornalista. Não perdeu a profissão. Não a estava exercendo, assim como Antonio Palocci há muito não exerce a medicina, mas quem quiser tem o direito de chamá-lo de médico. Se Josias de Souza e Ricardo Noblat consideram Marcelo Netto jornalista e o nomearam como implicado no vazamento, onde está a barreira que impede ‘jornalistas’, de modo geral, de criticar jornalistas?
Aide-mémoire fornecido pelo leitor Renato Colombo:
“Quebra de sigilo bancário e fiscal é crime. Quem vazou os dados de Francenildo Costa deve ser punido. Assim como deveria ser punido: 1) Quem vazou para a imprensa, em agosto de 2004, dados fiscais e patrimoniais do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. 2) Quem violou as informações bancárias e fiscais da Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil), que estavam sob proteção da CPI da Terra. CPI, aliás, que era presidida pelo senador tucano Álvaro Dias. 3) Quem associou o nome de quatro deputados federais petistas com o valerioduto, a partir de documentos sob sigilo legal. Depois, comprovou-se que alguns nomes relacionados a supostos saques eram homônimos ou simplesmente inocentes. O vazamento para a imprensa foi de autoria do líder do PFL, deputado Rodrigo Maia. 4) Quem vazou dados protegidos por sigilo bancário e fiscal do ex-deputado José Dirceu. O autor foi o deputado Onyx Lorenzoni (PFL-RS), que tem contra ele uma representação por quebra de decoro parlamentar. 5) Quem vazou um relatório confidencial e provisório do Tribunal de Contas da União, divulgado na terça-feira pela imprensa, relativo à Petrobrás. 6) Quem vazou depoimento secreto do funcionário dos Correios Maurício Marinho ao Ministério Público. 7) Quem vazou o sigilo bancário do publicitário Duda Mendonça, sob guarda da CPI dos Correios.”