Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Controle público da comunicação: muito além do conteúdo
Control publico de la comunicación: mucho más allá del contenido


Contribuição do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social para o Colóquio Latino-Americano sobre Observação da Mídia


Qualquer cidadão consciente sabe que a televisão comercial brasileira superou todos os limites. Ela é moral e eticamente indefensável. Os ‘proprietários’ dessas emissoras são concessionários de um serviço público, mas não agem com base nessa premissa. O resultado dessa distorção da democracia brasileira é o abuso da liberdade de expressão, que se materializa na violação dos Direitos Humanos, no desrespeito aos grupos sociais e na exploração do mundo-cão. Para usar um termo que se tornou bastante popular nos últimos anos, a tônica dessa desafinada sinfonia é a baixaria.


O lado positivo da história é que o país já acordou para o problema e a sociedade civil vem se organizando. A Campanha Pela Ética na TV – Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania, promovida pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados com participação de inúmeras entidades da sociedade civil organizada é uma face dessa luta. A ocupação da Rede TV! pelo o programa Direitos de Resposta é, sem dúvida, outra prova de que podemos pôr um ponto final nesses abusos.


Estes dois exemplos – além de outros, como as iniciativas do Ministério da Justiça em relação à classificação indicativa da programação de televisão – apontam para uma primeira face do controle público dos meios, que é o controle de conteúdo. No entanto, é preciso ampliar esta concepção e estendê-la para os campos da propriedade e das concessões, necessariamente reguladas pelo Estado e passíveis de fiscalização por parte da sociedade.


O caso Direitos de Resposta


O programa Direitos de Resposta é um exemplo de que podemos reverter este quadro de abusos, ter uma televisão mais plural e democrática e construir uma cultura de controle público da mídia no país. Entre os dias 12 de dezembro de 2005 e 20 de janeiro de 2006, a Rede TV! (uma das redes comerciais nacionais de televisão do Brasil) foi obrigada a levar ao ar 30 programas educativos, de promoção dos direitos humanos, no lugar do programa Tarde Quente. A ocupação da emissora foi resultado de uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal junto a seis entidades (1)  da sociedade civil organizada, entre elas o  Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, contra a violação de direitos humanos praticada pelo programa do apresentador João Kleber. A exibição do programa foi definida em um acordo judicial firmado depois que a emissora se recusou a cumprir uma liminar da Justiça e teve seu sinal cortado e seus transmissores lacrados – como acontece diariamente com radiodifusores comunitários que não conseguem obter uma concessão do Ministério das Comunicações.


Para ter o sinal de volta, a Rede TV! aceitou pagar R$ 200 mil para o financiamento dos programas e garantir sua exibição no horário antes reservado ao programa violador. Também foi multada e obrigada a pagar R$ 400 mil para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, além de se comprometer a readaptar sua grade de programação de acordo com a classificação feita pelo Ministério da Justiça, o que não ocorria antes. Foi certamente um fato inédito na história da TV brasileira e, durante 30 dias, os telespectadores puderam assistir a um amplo debate sobre os mais variados temas, todos relacionados aos direitos humanos, abordados sob a ótica de quem luta para efetivá-los no país: movimentos sociais, movimentos civis, organizações não-governamentais, entidades de classe etc.


O caso Direitos de Resposta abriu um importante precedente. Ele não é o fim de um processo. É apenas o princípio. Uma nova porta que se abre na luta por uma mídia mais democrática, que já conta com importantes instrumentos e que vem ganhando corpo diariamente.


Controle público: mais que controle de conteúdo


Apesar da importância – histórica inclusive – dessa experiência, a idéia de controle público não deve ficar limitada à fiscalização das programações de TV, sejam elas públicas, privadas ou estatais. Deve ser estendida substancialmente, colocando-o como fundamento da garantia do direito humano à comunicação, ou seja, como elemento que assegure a todas as pessoas e grupos sociais a condição de partícipe do universo das mídias. Sendo assim, ao afirmar que a comunicação é um campo de interesse público, em que cidadãos exercem direitos fundamentais, é imperioso reconhecer que o único ente legítimo para garantir aquilo que cabe a cada de um de nós é justamente o conjunto da sociedade, diretamente e por meio de seus representantes.


Para que isso aconteça, e para que o controle público seja exercido em sua plenitude, faz-se necessária a regulamentação dos artigos constitucionais do capítulo sobre comunicação social e a execução de políticas públicas específicas, que podem ser divididas basicamente em três grupos.


O primeiro deles é constituído de medidas que visam impedir o domínio dos meios de comunicação por um ou poucos grupos. Essas medidas são predominantemente de cunho legislativo e prescindem de mecanismos de controle igualmente democráticos. Na prática, tais medidas visam impedir, que em uma região específica, um mesmo grupo ou rede seja proprietário de jornais diários, emissoras de rádio e TV.


Outras iniciativas igualmente importantes são as que visam impedir a concentração horizontal dos meios de comunicação, ou seja, a oligopolização ou monopolização que se produz dentro de uma área ou setor, e as que visam impedir a concentração vertical, ou seja, a concentração das diferentes etapas da cadeia de produção e distribuição por um único grupo.


O segundo grupo de medidas visa garantir o acesso igualitário dos indivíduos e dos grupos sociais aos meios de comunicação, assim como zelar pela pluralidade ideológica e cultural no espaço público midiático. Dessa forma, deve-se incentivar o surgimento e a manutenção de veículos de caráter público, ou seja, sem fins lucrativos, em especial os de caráter comunitário e regional, favorecendo sua regulamentação (como no caso das concessões de Rádio e TV) e também garantindo sua sustentabilidade material e financeira, assim como o acesso ao conhecimento técnico. Muitos países adotam medidas nesse sentido, financiando veículos comunitários e de caráter não lucrativo, assim como obrigando corporações de comunicação a financiar veículos de comunicação de pequeno porte.


Num cenário de convergência, em que a presença da Internet é cada vez mais constante, deve-se garantir o acesso direto ou indireto de todos os cidadãos às Tecnologias de Comunicação e Informação. A desigualdade gerada pelos fatores econômicos é, portanto, hoje, uma grave violação do direito à comunicação.


Por fim, o Estado deve adotar medidas que garantam aos cidadãos um instrumental mínimo, em especial durante o período escolar, para que os indivíduos reajam de modo crítico diante da informação e possam, em função de exigências qualitativas e culturais, selecionar aquilo que querem receber. Somente a capacitação crítica através do fornecimento de um instrumental de análise dos meios e suas linguagens pode tornar o cidadão um sujeito ativo no processo comunicativo.


Já o terceiro grupo de medidas, conhecidas por aquilo que muitos entendem por controle público, são aquelas que visam democratizar e dar transparência à formulação e o acompanhamento das medidas dos primeiros dois grupos, de restrição e de promoção. Tais medidas constituem-se na criação de espaços públicos de deliberação, composto por ampla representação de segmentos políticos e sociais, que têm como função fiscalizar os detentores de concessões públicas (como no caso da Ação Civil Pública contra a Rede TV! e João Kleber), propor correções e sanções.


Estes espaços públicos também devem gerir os fundos públicos que visam promover um ambiente midiático igualitário e representativo, assegurando não só a pluralidade ideológica, mas também zelando pela diversidade cultural e regional nos meios de comunicação social. As medidas de restrição e gestão visam, acima de tudo, garantir que a única influência sobre as medidas de restrição e promoção seja o interesse público, excluindo as possibilidades de que um dos poderes -político ou econômico – prevaleça em detrimento do interesse da coletividade.


Perspectivas do controle público no Brasil


O desenvolvimento de mecanismos de controle público mais amplos depende de uma mudança radical no marco regulatório do campo das comunicações, hoje fragmentado e desatualizado em relação às transformações tecnológicas em curso.


Tal mudança, sabe-se, não ocorrerá sem a pressão dos diversos segmentos sociais hoje excluídos da produção e difusão da informação. E, nesse sentido, há que se reconhecer uma mudança na postura dos movimentos e organizações sociais, cada vez mais atentos ao fato de que a comunicação é um campo transversal, fundamental inclusive para o fortalecimento da luta pela efetivação de outros direitos humanos.


A digitalização da radiodifusão, em especial da televisão (atualmente em fase de planejamento), abre uma janela de oportunidades para uma ampla revisão da legislação das comunicações. Ao necessariamente induzir alterações no marco regulatório, a introdução da TV Digital no Brasil apresenta a combinação destes dois elementos: de um lado, a percepção crescente da sociedade de que é preciso desconcentrar radicalmente os meios de comunicação e, de outro, a premência da alteração legislativa. Tal combinação coloca em xeque os privilégios hoje estabelecidos neste campo. Sendo assim, cabe à sociedade fazer valer seus direitos para regular a produção e difusão de informação sob o prisma do interesse público.


(1) As entidades promotoras da Ação junto à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo são Ação Brotar pela Cidadania e Diversidade Sexual (ABCDS), Associação da Parada do Orgulho dos Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo, Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo (AIESSP), Centro de Direitos Humanos (CDH), Identidade – Grupo de Ação pela Cidadania Homossexual, e Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.