A transformação da mídia em partido político informal é um fenômeno em ascensão não apenas aqui no Brasil mas em boa parte do mundo. Não se trata de desvios de conduta deste ou daquele veículo, mas de uma conjuntura econômica e política que está levando a imprensa a exercer um papel que, estruturalmente, deveria ser dos partidos políticos.
Além da sucessão diária de fatos e eventos que revelam de forma cada vez mais nítidas as simpatias eleitorais da imprensa brasileira, além fronteiras, as fidelidades e interesses da mídia também estão na agenda pública de países como Portugal, Itália e Rússia, só para citar os mais conhecidos.
Em Portugal, um escândalo envolve políticos, financistas e jornalistas da emissora TVI, controlada pelo grupo espanhol Prisa. Tudo por conta dos interesses na construção de um mega shopping Center nos arredores de Lisboa, onde o suborno foi largamente usado para obter licenças ambientais e urbanísticas. É um escândalo complexo porque há espanhóis e ingleses também metidos no negócio, que é o grande tema da campanha para as eleições legislativas do dia 27 deste mês.
Na Rússia, o escândalo envolve a editora norte-americana Condé Nast que proibiu a publicação de um artigo com documentos e depoimentos mostrando o envolvimento primeiro ministro russo Vladimir Putin, numa série de atentados a bomba em Moscou, que causaram dezenas de mortos em 1999.
As explosões foram atribuídas aos separatistas chechenos, mas teriam sido provocadas para fortalecer o apoio à posição de Putin, então vice – primeiro ministro e defensor da repressão aos dissidentes.
A decisão da Condé Nast, que edita cerca de 20 revistas em russo, foi no entanto desafiada pelo site Gawker que convocou blogueiros de todo mundo para fazer uma tradução coletiva do artigo escrito pelo veterano correspondente, Scott Anderson. O texto em russo foi distribuído pela Web e acessado por cerca de 200 mil pessoas.
O envolvimento da imprensa com questões político-partidárias não é novo mas está ganhando uma visibilidade crescente, especialmente aqui na América Latina com a polarização provocada pelos governos de Hugo Chávez, na Venezuela; Evo Morales, na Bolívia e Rafael Correa, no Equador.
A maioria dos jornais latino-americanos perdeu a objetividade na hora de informar sobre o que acontece nestes três países, da mesma forma que a imprensa simpática a Chávez, Morales e Correa ignora as críticas aos respectivos governantes. A politização da informação pelos governos foi acompanhada com igual empenho pela imprensa, gerando uma situação em que todas as notícias ficam sob suspeita de responder a algum interesse oculto.
Este processo de identificação da imprensa com objetivos eleitorais acontece num momento em que os partidos estão cada vez mais descaracterizados e desprestigiados, ao mesmo tempo em que os jornais passam por um período de dificuldades financeiras provocadas pela migração de leitores e anunciantes para a Web.
O desgaste dos políticos é especialmente nítido na America Latina, onde os grandes lobbies corporativos, que antes se identificavam com os partidos conservadores, estão agora em aliança com a imprensa, aproveitando a difícil conjuntura vivida pela mídia regional, em especial pelos jornais impressos.
Fenômeno idêntico mas com motivos diferentes acontece no lado dos governos, onde os partidos de esquerda simplesmente foram devorados pela máquina política do Estado. Nos países onde a situação está mais radicalizada, é total a confusão entre os conceitos de liberdade de informação e liberdade de imprensa. Os jornais simplesmente transformaram as duas expressões em sinônimos, enquanto os governos usam a primeira contra a segunda.
Neste confronto, existe uma forte possibilidade de que ambos os lados acabem como perdedores. O impasse entre governos populistas e jornais conservadores pode provocar, de um lado, a ingovernabilidade e, do outro, seqüelas irreparáveis na credibilidade da imprensa, num momento em que a confiança do público é essencial para o êxito de novos modelos de negócio da mídia na era digital.
A irritação dos leitores de jornais é visível nos comentários postados neste Observatório da Imprensa e noutros sites de notícias sobre a imprensa. É difícil avaliar a magnitude deste criticismo mas não há duvidas de que suficientemente intenso para deixar no ar uma grande preocupação.
Nós precisamos dos jornais porque, seja qual for o seu perfil futuro, eles necessariamente farão parte do leque de opções essenciais na tomada de decisões individuais. A imprensa é importante demais para ser deixada apenas ao sabor do jogo eleitoral entre empresários e governos.