Dos grandes, só o Globo, já na primeira página, ligou os pontos de duas declarações do presidente Lula, no mesmo dia, sobre como os brasileiros devem se comportar diante da crise econômica.
Na sexta de manhã, em Brasília, ele disse numa entrevista, esbanjando otimismo:
“Precisamos nos preparar para comprar tudo que a gente sonha comprar no Natal”.
À tarde, num discurso em São Paulo, pôs o pé no freio:
“Comprem apenas aquilo que seu salário pode pagar, não comprem mais, apenas o suficiente, porque estou convencido de que a crise é grave…”.
Guardadas as proporções, lembra o presidente Bush, pouco depois do 11 de Setembro, exortando os americanos a ir às compras – isto é, viver a vida normal – enquanto o seu governo disparava alarmes sobre a possibilidade de novos ataques terroristas.
Compreende-se que, nas horas difíceis, o papel dos governantes é “passar serenidade”, como diz Lula. Mas o papel da imprensa – e não só nessas horas – é de passar informações e destacar as conexões entre eles.
No caso do dia, ressaltar a conexão entre o “comprar tudo” e o “comprar apenas” significa alertar o leitor para o presumível conflito entre a visão que o presidente quer que os brasileiros tenham do preparo do país para enfrentar a tormenta financeira e a prudência que a situação exige de todos.
Dito de outra forma: ainda que a economia brasileira siga o seu curso, não está imune aos efeitos tóxicos do que já se chamou “a explosão em câmara lenta dos mercados acionários mundiais”.
”Siga o seu curso”? Na primeira semana do mês, as vendas à vista em São Paulo, medidas pelo número de consultas dos lojistas ao Use-cheque, caíram 2,4% em relação à primeira semana de outubro de 2007.
É a primeira vez, nota a Folha, que isso acontece na comparação entre a média diária das consultas este ano e a de iguais períodos no ano passado.
O jornal cita o comentário de um economista da Associação Comercial de São Paulo:
”A cada dia aumenta o número de consumidores que têm informações sobre a crise, já que são muitas as notícias sobre esse assunto. Com isso, as pessoas estão com medo de gastar.”
A primeira frase indica que, diga-se o que se queira, a mídia está conseguindo colocar a crise no campo de visão do grande público. A segunda aponta para a tal da profecia que se cumpre por si só:
A economia se retrai porque o consumo se retrai por causa do medo dos consumidores de que a economia se retraia.
E então? É comprar “tudo que a gente sonha” ou “apenas aquilo que o salário pode pagar”?