Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cultura publicitária

O jornalista Laurindo Leal Filho, professor da Escola de Comunicações da USP e especialista em televisão, publicou domingo no Estado o artigo “Por um modelo mais criativo”. Nele, defende a formação de uma rede pública nacional de TV para se contrapôr ao modelo hegemônico das emissoras que levam ao ar “apenas aquilo que dá perspectivas mais imediatas de lucro”.

Tudo perfeito, mas nada de novo. A novidade, pelo menos para os padrões dos dias atuais, é que, para Laurindo, o projeto de financiamento dessa rede deve levar em conta todas as alternativas hoje existentes, menos uma: “o anúncio comercial, incompatível com a linguagem de uma televisão pública”.

Comerciais não por quê? “O apelo ao consumo, conquistado através da emoção, é inconciliável com uma programação mais reflexiva, balizadora do modelo público.”

Laurindo, em suma, sonha com uma BBC brasileira que concorreria com as demais estações “não mais por recursos (…), mas por uma audiência cada vez mais exigente, qualificada e atuante”.

Eu também, Laurindo, eu também. Mas não fecho questão de saída.

Primeiro, admito que, embora o assunto não seja novo, deve haver elementos novos para sustentar um debate substantivo a respeito. A questão do financiamento dos meios públicos de comunicação é cada vez mais espinhosa — mesmo na Grã-Bretanha.

Pior então no Brasil, onde não raro a governista Rede Brasileira de Notícias, que nem sequer é pública (no sentido de Laurindo e tantos outros), mas estatal, não tem dinheiro para pagar o tempo do satélite de comunicações que utiliza.

Segundo, não tenho posição prinicipista contra toda e qualquer publicidade comercial. Não vejo por que os recursos advindos dos chamados anúncios institucionais de empresas, vinculados ou não a programas específicos, devam ser banidos da TV pública. Seriam eles realmente incompatíveis com a sua “linguagem”?

Uma coisa é um comercial sóbrio, que respeite o espectador, destinado a promover a imagem de uma companhia, divulgando, digamos, o que ela faz além de carrear lucros para os seus controladores. Outra coisa é o comercial “hard sell”, que predomina nas emissoras comerciais e que não se inibe de recorrer a tudo que se prestar ao objetivo de tomar o dinheiro do distinto.

Isso é tão adequado a uma televisão pública como as baixarias das quais tanto se fala a qualquer emissora de rádio e TV.

Ao que mais interessa, porém. A TV de Cultura de São Paulo, que de uns tempos para cá passou a veicular quase todo tipo de comerciais, sem exceção daqueles voltados para o consumo infantil, resolveu polemizar com Laurindo.

E o meio escolhido foi — um comercial.

Ocupando quase 4 colunas de página no caderno Economia do Estadão de hoje e o equivalente no caderno Ilustrada da Folha, a mensagem publicitária assinada pela agência Lage Magy pergunta retoricamente em letras que antigamente se dizia serem garrafais: “Sabe qual é o papel dos comerciais na TV Cultura? Manter a TV Cultura fiel à TV Cultura”.

Seguem-se 105 palavras de demonstração. Tomadas pelo valor de face, as primeiras e enfáticas 27 são um non-sequitur: não passam por um escrutínio lógico.

Primeira afirmação: “A TV Cultura avançou para se tornar mais profissional, mais abrangente e mais instigante.” Segunda: “O fato de você ver comerciais nos nossos intervalos faz parte desta evolução”.

Claro que a discutível premissa logo a seguir explicitada é que essa evolução não seria possível sem o aumento da receita proporcionado pelos comerciais “muito bem-vindos por aqui”. Ou seja, vendendo espaço indistintamente, “continuamos fazendo o que sempre fizemos, só que cada vez melhor, em respeito à sua inteligência”.

À parte o uso de um texto publicitário, com o seu léxico típico – “mais qualidade”, “mais fiel a seus princípios e valores”, “cada vez melhor” – em vez de um artigo assinado por quem de direito, de preferência no mesmo espaço antes ocupado por Laurindo, o comercial passa ao largo daquela distinção que me parece essencial quando se discute publicidade em emissoras públicas: de que gênero de publicidade se está falando?

Espero ardorosamente que o anúncio-réplica e o seu conteúdo não sejam parte da “evolução” de que se gaba o comercial. Isso tem outro nome.