Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Dá para acreditar nos jornalistas?

Sempre que esta pergunta surge, quem trabalha na imprensa, e mesmo os que não frequentam mais as redações como eu, são tomados por uma sensação de desconforto. É que a pergunta embute uma dúvida que dispara de imediato uma reação de autodefesa, porque parte-se do pressuposto de que o jornalista tem a verdade como principal referência de sua atividade.

Um grupo de jornalistas e figurinhas carimbadas da internet dos Estados Unidos resolveu, na terça-feira (23/10), em Nova York,  colocar em debate a relação dos profissionais da imprensa e a verdade dos fatos, num evento patrocinado pelo Instituto Poynter, da Flórida, um dos mais respeitados centros de estudos jornalísticos do país.

Para surpresa dos participantes diretos e para os que as assistiram às discussões pela internet, a resposta não foi conclusiva — o que deixou muita gente perplexa e com uma pulga atrás da orelha, conforme admitiu Mattiew Ingram, um dos participantes. Normalmente a relação dos jornalistas com a verdade provoca de imediato a formação de duas facções inconciliáveis, onde a dúvida é associada com omissão.

O debate sobre o jornalismo e a ética na era digital organizado pelo Poynter trouxe para o primeiro plano mais incertezas do que o esperado, o que para muitos, como o jornalista e pesquisador Craig Silverman (editor da coluna "Regret the Error", na página do Poynter), foi um fato positivo.

O fato das posições contra e a favor terem perdido espaço para a opção "depende" mostra até que ponto as mudanças provocadas pela internet estão afetando alguns valores centrais ao jornalismo. No momento em que a imprensa  sofre o impacto da avalancha informativa, ficou cada vez mais difícil separar o joio do trigo, e consequentemente mais questionável a chamada verdade dos fatos.

Isso porque o público foi acostumado ao longo de décadas a esperar que os jornalistas lhe trouxessem diariamente uma versão dicotômica da realidade, sem  nuances ou incertezas. Como não havia muita diversidade de fontes informativas, tudo o que a imprensa dizia não enfrentava tanto criticismo como hoje. O fato de serem considerados uma espécie de oráculo da verdade  colocou os jornalistas numa posição especial (os homens que sabem das coisas), mas criou também uma cobrança quase impossível de ser atendida.

Durante muito tempo os jornalistas encararam o questionamento ético do seu trabalho como o equivalente a uma ofensa pessoal e, em alguns casos, até como uma agressão à categoria profissional. Isto contribuiu para o aumento do número dos desafetos da profissão e, pior do que isso, para consagrar uma falsa dicotomia entre bons e maus.

A avalancha informativa gerada pela internet está ajudando a relativizar a questão da verdade no jornalismo ao — paradoxalmente — consagrar a dúvida. Quase todos os participantes do evento promovido pelo Instituto Poynter concordaram que o jornalista da era digital é um profissional obrigado cada vez mais a conviver com incertezas. 

Os norte-americanos se acostumaram durante 19 anos a só irem para a cama depois de ouvirem Walter Cronkite (que se aposentou em 1981) fechar o telejornal da noite da rede CBS com a icônica frase “And that's the way it is” (em tradução livre, é assim que as coisas são). Dormiam tranquilos convencidos de que sabiam da verdade dos fatos. Hoje, a TV americana virou uma incrível cacofonia noticiosa que gera mais confusão do que convicção.

O que os jornalistas começam a se dar conta é que o custo de serem considerados os donos da verdade tornou-se alto demais e que a realidade atual é muito mais complexa do que o estipulado nas regras formais e informais da profissão. A começar pelo fato de que os conceitos de verdade e erro são hoje objeto de enormes discussões envolvendo desde filósofos e juristas até pessoas comuns.

Até a era da internet, quem determinava o justo ou injusto, o certo ou errado, o verdadeiro ou falso eram as personalidades acima de qualquer suspeita, a igreja e os tribunais. Agora, quem começa a assumir esse papel de juiz da credibilidade e confiabilidade são sistemas eletrônicos, chamados sistemas de reputação, baseados em princípios matemáticos de probabilidade e em estatísticas.

Os sistemas de reputação consagram a relatividade na definição do que é verdadeiro ou falso. Ao levarem em conta uma quantidade enorme de dados e percepções sobre um mesmo fato, os sistemas logram uma contextualização muito mais ampla do que a alcançável por um ser humano, mas nunca chegam a um veredito do tipo certo ou errado. É sempre uma afirmação relativa: tende a ser certo ou tende a ser errado.

Esses sistemas já são largamente usados na internet e podem ser vistos em ação em sites como os de comércio eletrônico, que oferecem uma avaliação de compradores e vendedores. A categorização é expressa em porcentagens e não em sentenças dicotômicas do tipo bom ou mau.

A convivência dos jornalistas com os sistemas de reputação vai mexer com valores muito entranhados na profissão. Não consigo imaginar qual o rumo que tomará a questão, mas pelo menos começamos a entender que não somos oráculos da verdade. Isto cria outra situação inédita, pois o público terá que assumir a busca de sua verdade, tarefa que ainda joga nas costas do jornalista. Os profissionais da imprensa poderão, no máximo, aconselhar.