O Observatório da Imprensa organizou em 5 de janeiro de 2007, com a ajuda dos professores Jorge da Silva e Roberto Kant de Lima, o primeiro de uma série de debates sobre criminalidade, violência, políticas públicas e trabalho da imprensa. Foi um contraponto à dinâmica jornalística da mais recente onda de violência criminosa, que aterrorizou a população do Rio de Janeiro e do Brasil nos últimos dias de 2006, e não pára de produzir eventos que precisam ser informados à população.
Os participantes foram, além dos dois professores citados e do autor destas linhas, os jornalistas Jorge Antônio Barros, editor adjunto de cidade do jornal O Globo, Sérgio Torres, repórter da sucursal carioca da Folha de S. Paulo, e André Luiz Azevedo, repórter da TV Globo. O promotor Astério Pereira dos Santos teve que sair logo no início dessa segunda rodada. [Clique aqui para ler a primeira parte do debate.]
Dois raciocínios estão na base das intervenções na segunda rodada do debate. Jorge da Silva discute a ideologização da atividade das Polícias promovida pela ditadura militar. Passa a haver o “inimigo interno”. O coronel diz que hoje mudaram os rótulos, mas não os conceitos. Kant de Lima associa corrupção, venda de proteção pelas milícias e uma série de outras mazelas ao fato de que a sociedade brasileira é juridicamente uma sociedade de desiguais, onde existe, por exemplo, o instituto da “prisão especial”. Jorge Antônio Barros reconhece que a imprensa do Rio de Janeiro destaca o lado negativo, mas prefere isso ao que, segundo ele, faz a imprensa de São Paulo, que é esconder o lado negativo. André Luiz Azevedo diz que a cobertura jornalística das milícias é difícil porque elas contam com simpatia da população, sentimento contrário ao que predomina nas redações. Sérgio Torres prevê que essa simpatia não vai durar muito.
Esta abertura não pode dar conta da riqueza da discussão. Recomenda-se ler o texto completo. Para facilitar a leitura, foram introduzidos entretítulos e explicações entre colchetes.
Repito aqui a qualificação dos professores debatedores.
Roberto Kant de Lima é formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fez mestrado em Antropologia pelo Museu Nacional, da UFRJ, doutorado em Antropologia por Harvard e pós-doutorado pela Universidade de Alabama e pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Jorge da Silva é coronel da reserva da PM do Rio de Janeiro. É formado em direito pela Universidade Federal Fluminense. Fez mestrado em Letras pela UFF e doutorado em ciências sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Foi subcomandante da PM no segundo governo de Leonel Brizola (1991-1994), presidente do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (governo Anthony Garotinho, 1999-2002) e secretário de Direitos Humanos (governo Rosinha Garotinho, 2003-2006).
Eis a transcrição, com mínimas interferências do editor, da segunda rodada do debate sobre as raízes da violência.
Mauro Malin – Sem querer ser leviano, baseado na leitura dos jornais que faço diariamente, não vejo ser tratado o seguinte assunto: quem consome as drogas? Tem gente que diz que agora existe um consumo praticado por pobres, uma coisa diferente, talvez mais preocupante.
Outra coisa: favelização e empobrecimento. Está no livro de Andrelino Campos Do Quilombo à Favela. A Produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro: entre diversas áreas metropolitanas de capitais brasileiras, só em duas aumentou a favelização: Rio de Janeiro e Porto Alegre. Caiu em todas as outras: Belém, Salvador, Recife… É preciso levar em conta o empobrecimento da população do Estado do Rio, a ser visto no contexto do empobrecimento do estado, com todas as dificuldades que advêm disso.
E ainda: acho que existe um problema de gestão policial, gestão lato sensu do Estado/corrupção.
Responsabilidade X culpa
Jorge da Silva – Eu entrei aos 17 anos na Polícia Militar, passei para a reserva aos 50. Eu tinha uma idéia de que a corrupção dependia muito de quem estava em cima. Depois dos estudos que eu fiz percebi uma característica no Brasil: a distinção entre responsabilidade e culpa.
Nós trabalhamos com o conceito de culpa. Está tudo certo mas, quando der errado, alguém tem que ser culpado. Trabalhando com esse conceito, você não precisa se antecipar aos fatos, porque se se antecipar vai ter que estabelecer a priori a responsabilidade em diferentes níveis.
Exemplo: um governo chega e institui uma premiação por bravura, faroeste, etc. Você vai para a estatística e verifica que o número de mortes praticadas por policiais aumenta, o número de policiais mortos aumenta, o número de casos de corrupção policial aumenta. Bom, e a responsabilidade de quem promoveu aquelas medidas? Um secretário de Segurança chega e diz: “Tem que atirar primeiro e perguntar depois”. Nesse clima, fica muito difícil combater a corrupção.
Discurso contra a lei dentro do Estado
Vamos agora para dentro da polícia. [Ouve-se de um oficial:] “Coronel, com esse Estatuto [da Infância e da Adolescência] não dá para trabalhar. Essa Constituição é muito permissiva”. Não há distinção entre o que ele diz e o que diz um cidadão comum, uma dona de casa, sem responsabilidade. Como é que pode o secretário de Segurança, o comandante da PM, o comandante de um batalhão, um titular de uma delegacia adotar esse discurso para os seus subordinados?
Todo mundo na Polícia sabe quem é quem
Novamente corrupção. Um exemplo de minha experiência. Vocês pensam que toda vez que se encontra um PM ou um policial civil envolvido com drogas, com seqüestro, extorsão, é novidade dentro da polícia? Não, todo mundo sabe quem são os bandidos da Polícia, os ladrões da Polícia, os riquinhos, esses que têm carrões.
Roberto Kant de Lima – Todo mundo sabe quem é quem.
J.S. – Sabe. Só que é aquela história da novela [Roque Santeiro]: “Não me digue, não me digue”. Quer dizer, um comandante não tem responsabilidade. Quando acontece alguma coisa, eles dizem que vão apurar.
Diretor não pode dizer que não sabe
Eu gostei hoje (5/1) do governador, não sei se ele fez aquilo só para dar uma resposta, fazer um proselitismo político, ou se aquilo é fruto de uma orientação conceitual. Se for uma orientação conceitual, ele está no caminho certo. Chegou lá no Hospital Getúlio Vargas, o diretor não soube dizer nada, não sabia de nada, nada funcionando, ele exonerou. Era muito cômodo para o diretor colocar a culpa em alguém. Culpa. Mas a responsabilidade é dele.
Sérgio Torres – Mas o diretor tinha acabado de chegar, não tinha nem 24 horas, ele não sabia de nada.
“Já expulsamos dois mil”
J.S. – Sim, eu sei, mas eu fiz questão de frisar: “Não sei se foi proselitismo ou se faz parte de um conceito que eles queiram imprimir”. Vocês que trabalham com meios de comunicação devem prestar bastante atenção nisso que eu estou falando. As autoridades tiram o corpo fora, incentivam a violência, o mau comportamento, e, quando dá errado, o que acontece? O comandante da PM, um delegado, diz: “Aqui nós não toleramos corrupção. A Polícia é honesta. Já expulsamos dois mil” [risos]. Essas pessoas se apresentam como heroínas. “Nós estamos com tanques nas ruas.” Ora, se você já colocou tanques nas ruas, que medida você adotou para que eles não praticassem atos de corrupção?
Jorge Antônio Barros – É aquele conceito de accountability. Prestação de contas.
J.S. – Exatamente.
J.A.B. – Por que não se conseguiu implantar isso?
Quadrilha de PMs ladrões levava carros para o quartel
J.S. – Isso é tradicional, é da nossa História: alguma coisa deu errado, põe o cara lá de baixo para levar a culpa. Por que sempre fui considerado um E.T. dentro da Polícia? Quando eu trabalhei com o coronel [Carlos Magno] Cerqueira, ele era o secretário, eu era o chefe do Estado-Maior, disse: “É de cima para baixo. Batalhão está na mão do comandante, então vai ter que responder”. “Ah, eu não sabia”. “Como é que não sabia? Você estava ocupado no seu quartel? Você é comandante de um batalhão e o seu estacionamento está cheio de carro importado e você não sabe de nada? O que é isso?”
Sabem o que aconteceu no 19° Batalhão [Copacabana] há uns anos atrás? Uma quadrilha de PMs ladrões de automóveis roubava os carros e colocava no estacionamento do quartel. Vocês conhecem esse caso.
S.T. – Mas não tinha conivência superior?
Fingir que não acontece nada
J.S. – Não, é diferente. “Não me comprometo”. Vou explicar como é que funciona isso. Você chega para assumir um batalhão e não mexe em nada, porque se você adotar alguma ação, vai aparecer o fato. Mesmo que você adote uma ação contra, aquele fato aparece e pode prejudicar a sua posição. Então é melhor não deixar aparecer nada.
R.K.L. – A primeira pesquisa etnográfica que eu fiz sobre essa questão foi entre 1982 e 1985, com a Polícia do Rio de Janeiro, polícia judiciária. Eu passei três anos acompanhando não só a Polícia, mas os tribunais, os júris e tribunais superiores para a minha tese de doutorado que está publicada pela Forense, Polícia da cidade do Rio: seus dilemas e paradoxos [reeditado em 1995, esgotado].
O envelopinho com dinheiro do bicho
Tinha um delegado que era amigo meu, eu acompanhava seu trabalho na Polícia, era um sujeito honesto, filho de uma empregada doméstica, tinha sido escrivão de polícia, e atípico, honesto. Ele não aceitava dinheiro do [jogo do] bicho. Em 1982. O bicho dava dinheiro para todos os delegados e ele não aceitava, então eles o transferiam de delegacia. Ele ficou pulando de delegacia em delegacia até o dia em que ele não agüentou mais, porque ameaçaram transferi-lo para o interior do estado e ele era do Rio, um delegado da antiga Guanabara, e ele topou o negócio. Ele me mostrou o envelopinho, tinha dez reais dentro, em moeda de hoje: “Está aqui, Kant, abri as pernas” [risos]. Chama-se José Monteiro de Carvalho, está no livro, ele fez questão de que constasse o nome.
O honesto: “Não tenho nada com isso”
Anos depois, dei uma entrevista, falei essas coisas, fui interpelado por um delegado de Polícia aqui de Icaraí, um delegado muito honesto, Valdir Vieira, me parou lá na [Avenida] Amaral Peixoto: “Professor, você deu entrevista, disse que a Polícia está nas mãos dos bicheiros, todo mundo ganha dinheiro do bicho. Isso não é verdade, eu sou uma pessoa honesta, o senhor sabe disso, só tenho um apartamento lá no Fonseca [bairro de Niterói], com dois quartos, eu e minha mulher moramos lá”. Aos gritos, na Amaral Peixoto, eu estava passando. Eu respondi: “Isso eu sei, te conheço”, “Então como é que surgiu uma coisa dessas?” “Só vou fazer uma pergunta para você: você acha que o bicho continua dando dinheiro para a Polícia desse jeito que ele dava?” “Não, eu não tenho nada com isso”. “Tudo bem que você não tem nada com isso, mas você é policial. Você não é o delegado? Você faz alguma coisa para isso não acontecer?” “Eu não tenho nada com isso”. “Então eu tenho razão: quem manda na Polícia é o bicho e quem não recebe dinheiro do bicho, óh, cala a boca, fica quieto e não faz nada. Eu tenho razão e você não tem. Passe muito bem”. “Ô, professor, o senhor desculpe”, não sei o quê… Ele é todo estouradão.
Corporações, não instituições
É uma questão ética, ou seja, as orientações éticas estão trocadas. Eu acho que esse é o maior problema. A ética não é só a ética da corrupção, é a ética da particularização. Quando a gente fala em corporação – o Astério estava dizendo que as as corporações têm que se comunicar, partilhar informação. Têm, se elas fossem instituições, mas elas não são instituições, são corporações. Então, cada uma delas têm seus interesses particulares, suas questões particulares e seu poder particular, que está fundado na informação e na possibilidade de venda, venda, eu digo, de troca, de negociação dessas informações.
A identidade não é ser cidadão, é ser da corporação
Ela não quer dar informação para você, porque você vai usar. Ninguém troca informação com ninguém. Essa informação não é só uma palavra genérica – “informação é poder” –, não é isso, não, é a particularização da informação, quer dizer, a não universalização do acesso à informação por parte das instituições é fundamental para que elas se mantenham enquanto corporações. A identidade das pessoas não está ligada a serem cidadãos. A identidade deles está ligada, antes de tudo, a serem um membro da corporação, antes de serem cidadãos, e eles vendem ou trocam ou negociam essa moeda particular que eles acham que têm, que não é do Estado, não é do governo, não é do partido, mas é da corporação.
Por isso, ele se sente à vontade para dizer isso que o Jorge está dizendo: que a Constituição é uma porcaria, que o Estatuto da Criança e do Adolescente é outra porcaria, porque ele não tem nada com isso, ele não tem nada com a República. Ele tem a ver com a corporação e com a reprodução do poder dentro da corporação dele.
Particularização da coisa pública
Isso é um problema que não se chama privatização, porque isso é público, é do Estado. É particularização da coisa pública. Você se apropria particularizadamente. Uma outra coisa, por exemplo, é ter-se essa milícia que vende a proteção. Já é outro debate. Você está numa instituição particular. Outra coisa é a própria Polícia fazer isso fardada. Isso é uma particularização dessa sua função.
“Eu não sou dedo-duro"
Só é possível logicamente, moralmente e eticamente por causa desse etos corporativo, que troca as coisas. O delegado Valdir não podia denunciar o colega, porque o colega é colega e ele não é um dedo-duro. Falou para mim: “Eu não sou dedo-duro, professor!” “Então, eles estão mandando. Você, que é honesto, cala a boca e eles estão se dando bem, eles é que estão mandando”. Isso foi na década de 1980, ou seja, não estamos falando de fenômenos de 2006, de 2005.
Drogas são uma coisa, armas, outra
A outra coisa que eu queria observar é que droga tem na China, tem na Índia… Eu fiz trabalho de campo num lugar chamado Birmingham, Alabama, que tem uma das polícias mais violentas do mundo. Estive lá na década de 90, fazendo etnografia dos trabalhos policiais. Lá tem aqueles guetos negros onde os brancos vão comprar droga. Eles [a Polícia] têm uma série de estratégias, depois eu posso explicar, não cabe aqui, mas eles só prendem crioulos – só crioulo é que vende, só branco é que compra, um negócio fantástico, em termos étnicos –, mas não tem tiro.
Eu fui apresentado a um sargento que tinha dado tiro em uma pessoa – eles todos lá são pastores batistas e ele chorava contando para mim como é que ele deu o tiro, passou por uma situação…
Tipo: “Tem um cara aqui que deu um tiro”. “Tem?” “Tem”. Cataram o sujeito lá, telefonaram, e todo mundo: “Oooooóh”, e lá vinha o sargento: “Não, realmente, eu atirei no cara”.
E está lá o comércio de droga, o tráfico, todo dia eles apreendem no aeroporto, um milhão de dólares [não disse em que período]. Birmingham, Alabama, cidade de um milhão de habitantes.
“Foi a repressão que armou a droga”
Então, necessariamente, não precisa ter isso. A minha opinião – que, aliás, não é só minha – é que a forma da repressão e da transformação da violência em mercadoria vendável é que transformou isso numa coisa armada.
É ao contrário. Não foi a droga que se armou, foi a repressão que armou a droga, porque também é interessante vender arma. Todo mundo sabe disso. Aqui não tem nenhuma criança. As companhias vendem as armas. A arma virou uma mercadoria, valiosa, isso é mais dinheiro, mais um mercado. Isso está associado, como vocês sabem, a interesses. Todos particularizados, mas muitos deles corporativos.
M.M. – Todas as falas aqui foram muito úteis. O que tem de pauta submersa aqui… Esse caso da criança do Vidigal que não pode estudar na Rocinha, como disse o Astério [ver a primeira parte do debate] uma moça me contou: “Meu filho estuda no Leme”. Ela disse que não dá para colocar nem no Vidigal, nem na Rocinha, porque o filho teria que se decidir por uma das quadrilhas.
R.K.L. – Nós temos um filme aqui, que foi feito como projeto de extensão, que se passa ali na “Faixa de Gaza” da Nova Holanda, em que um colega nosso levou as crianças todas das facções distintas rodando pelo bairro. Para confirmar isso que você está dizendo.
Ditadura, mortes, corrupção
M.M. – Eu passaria para a questão da ditadura. Uma vez eu conversei com o coronel [Carlos Magno] Cerqueira e perguntei por que havia tanta morte. E ele disse: “Para mim, quando a ditadura começou a matar sem julgamento liberou todo mundo para fazer a mesma coisa”. Ele achava isso um fator muito relevante. Então, eu gostaria de saber qual foi o peso disso.
Outra, nós fomos visitar um quartel da Polícia Rodoviária de Niterói, eu tinha voltado da França e falei para o comandante do batalhão: “Coronel, na França o motociclista pára você na estrada, lá no meio do país, perdido, sozinho, cobra a multa e dá um recibo”. Ele falou: “Mas isso era assim aqui e eles traziam o dinheiro bonitinho para o quartel”. Ele não falou “ditadura”, mas na nossa conversa ficou claro que o autoritarismo tinha liberado o policial para se corromper e aí não dava mais para cobrar. Então, tem que aplicar a multa e mandar pelo correio.
“Milícia é grupo de extermínio”
O segundo ponto é sobre as milícias. E a outra discussão é a questão da política. A fonte de referência que me ocorre no momento é o livro do José Cláudio Souza Alves Dos barões ao extermínio – Uma História da Violência na Baixada Fluminense, em que ele mostra como sempre houve uma relação [entre o legal e o ilegal]. Ele começa na Colônia, quilombos que negociavam lenha para o Rio de Janeiro. Num momento da década de 1950, cita um episódio conhecido. Afonso Arinos e Nereu Ramos vão à casa do Tenório Cavalcanti para ele não ser preso, havia uma ordem de prisão contra ele.
Fica muito claro que tem uma ponte que passa por cima de todo o pessoal miserável – falta de esgoto, maré que sobe e alaga, etc. –, uma ponte pela qual as elites da capital e da Baixada se comunicam perfeitamente. Hoje continua, a não ser que tenha havido uma mudança com a eleição do Lindberg [Farias, prefeito de Nova Iguaçu, eleito pelo PT], que eu não acompanhei, não sei.
Já houve mudança com o [Leonel] Brizola, mas recuou. Souza Alves mostra isso, é a parte mais dinâmica do livro. “O PDT ganhou a eleição, começou a colocar prefeito e vereador”… e logo se compôs com a velha turma, que é a turma do esquadrão da morte, que tem a ver com milícia. Para mim, milícia é grupo de extermínio, esquadrão da morte, ficou famoso na ditadura. É o livro do Hélio Bicudo, Meu depoimento sobre o esquadrão da morte. Chamam de milícia porque é mais charmoso. Marketing.
Essas questões poderiam ser úteis também. Fiquem à vontade para cada um propor outras coisas.
PM entra na repressão política
J.A.B. – O coronel pode dar um depoimento para a gente. Com o golpe de 64, a PM foi usada diretamente, na linha de frente do combate à subversão. Eu acho que aí se dá um comportamento novo, os policiais tinham aquela coisa da dupla Cosme e Damião, que durou, acho, até o início da década de 60. Quando a Polícia Militar vai para as ruas, no combate à subversão, quando é criado o DOI-Codi, surgiu no Rio no final da década de 1960, 69, 70, uma tropa de elite da repressão, formada e integrada – olha a palavra integração, a repressão foi muito hábil na integração, colocou no DOI-Codi PM, policial civil, bombeiro, Exército, menos Marinha, porque eles não se misturavam…
J.S. – A Marinha trabalhava à parte.
J.A.B. – À parte, no Cenimar. Isso não agravou? Não deu, de certa forma, mais poder para esse policial que estava no quartel, que tinha uma outra visão e, de repente, ele está rua combatendo a subversão? Eu acho que isso foi um tanto vital.
André Luiz Azevedo – Ainda provocando o coronel, a gente teve, durante todo esse período, a Polícia Militar comandada todo o tempo pelo Exército.
J.S. – Exatamente.
Força auxiliar do Exército
A.L.A. – A Polícia Militar deixa de ser uma polícia e passa a ser uma força auxiliar do Exército, uma força militar.
J.A.B. – A Constituição já coloca como força auxiliar.
A.L.A. – Pois é. Mas ela é comandada de fato pelo Exército.
J.S. – Esse é um ponto muito obscurecido nas discussões. Quando falo da minha experiência é porque fica mais fácil explicar. Eu entro na Polícia Militar em 1961. Veio 64, há o golpe militar, mas a Polícia Militar já era força auxiliar e reserva do Exército. Aqui, em Niterói, onde eu entrei, a Força Pública, tinha Brigada Militar e Polícia Militar…
R.K.L. – Minas Gerais, São Paulo.
A.L.A. – Mas em Minas Gerais e em São Paulo eram muito mais militares do que do Rio de Janeiro. Acho que no Rio de Janeiro era mais polícia. Todo livro de História que a gente lê diz que em Minas Gerais, por exemplo, a PM era mais forte que o exército. Em São Paulo, a polícia participou da Revolução de 32.
J.S. – Não. A tal Revolução quem fez foi a Polícia Militar, aqui no Rio de Janeiro.
M. M. – Estado do Rio antigo.
Estruturação militar
J.S. – Estado do Rio antigo junto com o antigo estado da Guanabara. Quando eu entrei, a minha instrução era de batalhão. Eu era “volteador” [função de oficial de cavalaria] do “grupo de combate”. Nós éramos militares, Batalhão de Infantaria, de Caçadores. Assim a Polícia Militar era organizada, antes de 1964. Quando eu entrei, já era assim. A Polícia Militar tinha aqueles fuzis Madsen, metralhadoras Madsen. Algumas corporações tinham até aviões, eram verdadeiros exércitos. Como a Polícia Militar do Rio de Janeiro também era.
R.K.L. – Os “Treme-Terra”.
Inspetoria Geral das Polícias Militares
J.S. – É. Em 64, eu saio tenente, qual era a nossa função? A Polícia Militar vai realmente às ruas em 1967. Eles ficaram naquele chove-não-molha, faz-não faz, em 67 acabaram com as guardas civis e unificaram, na Constituição de 67, “agora só quem faz polícia ostensiva é a Polícia Militar”. Todas as guardas que havia antes – Boné Vermelho [Polícia Especial do então Distrito Federal, criada no Estado Novo], Guarda Civil, acabaram. Paralelamente, se instituem os DOI-Codis no Brasil inteiro, chamam majoritariamente a PM. E as Polícias Militares, que já eram comandadas por oficiais do Exército na maioria dos estados, passam a ter uma coisa chamada Inspetoria Geral das Polícias Militares, criada pelo Estado-Maior do Exército, que começa a inspecionar os batalhões e estabelece que toda a instrução – não se esqueçam de que estávamos num período muito ideológico – das Polícias Militares tinha que passar pela IGPM, ou seja, vinha de lá uma diretriz geral de instrução.
Eu tinha muito controle disso porque trabalhava no Estado-maior da PM, eu era major. Diziam o que devia constar do currículo. Aí vinha: “Segurança Interna I, Segurança Interna II, Informações e Contra-informações I, Informações e Contra-informações II, Guerra Revolucionária”. Tudo como disciplina obrigatória. E a Polícia podia acrescentar alguma coisa que fosse do seu interesse. Vinha aquela instrução e você mandava para Brasília um planejamento anual de ensino.
Ideologia de “lei e ordem”
São duas coisas distintas. “Ensino” é o que se ensina nas academias e a “Instrução” é o que se ensina nos quartéis, nas unidades. Então, vinha uma diretriz de Ensino e outra de Instrução. Você montava um programa e mandava para lá. E: “Isso sim, isso não”. Aprovavam e mandavam de volta o que você poderia ensinar nas academias e, depois, vinham fazer inspeção. Não só as autoridades, generais, coronéis da IGPM, como os comandantes de Região, os comandantes militares da área. E até de batalhão. De vez em quando chegava o comandante tal da área tal e você tinha que ir lá mostrar o que estava ensinando dentro dos batalhões. Em suma, a instrução foi sempre totalmente voltada para esse aspecto de “lei e ordem”, ideológico.
J.A.B. – Policiamento comunitário, então, não existia.
J.S. – Nem pensar. O grande problema que nós tivemos, o [Carlos Magno] Cerqueira e eu [a partir de 1983, no primeiro governo Brizola], é que nós tínhamos outra cabeça. Eu tinha feito curso de polícia nos Estados Unidos, Cerqueira tinha viajado à França. Nós tínhamos visto outras coisas.
Foi um problema muito sério esse desvirtuamento da polícia, maior na Polícia Civil, porque a Polícia Militar já vinha mais ou menos naquele passo. Claro que são duas coisas distintas. Uma coisa é você ter uma organização militar, para efeito de controle, outra é você trabalhar com ideologia militar, de combate, de inimigo, de cerco, guerra.
O exército é responsável por ter colocado essa ideologia nas Polícias Militares aqui no Rio de Janeiro. E depois o Marcello Alencar [1995-1998] procura o general [do Exército Nilton] Cerqueira, homem nitidamente centralizador, autoritário.
S.T. – Foi comandante do DOI-Codi em Salvador.
J.S. – Pois é. Em 2001, o João Sales faz aquele filme, Notícias de uma guerra particular, um filme interessante. Tem um depoimento do capitão [Rodrigo] Pimentel, um capitão da PM que era do Bope [Batalhão de Operações Especiais; Pimentel é co-autor, com André Batista e Luiz Eduardo Soares, do livro Elite da tropa], que diz o seguinte: “O Bope teve 156 ações no ano que passou, todas em favelas. Nós nos transformamos na maior tropa de combate urbano do mundo”. Todo mundo acha normal. E a gente sabe de onde ele tirou isso. Um ano antes acontece o 174 [seqüestro de um ônibus dessa linha na Rua Jardim Botânico; depois de longo cerco, ação desastrada do Bope matou a professora Geísa Firmo Gonçalves; o seqüestrador, Sandro Nascimento, é morto dentro de um carro da Polícia, a caminho da prisão]. E o Bope não sabia trabalhar. Quer dizer: um desvio total da finalidade.
Perdura, como novos nomes, o conceito de “inimigo interno”
Uma outra coisa muito grave que aconteceu nas polícias: tinha-se um serviço de informações e contra-informações. E inimigos. O chamado inimigo interno, porque quando você trabalha com a questão ideológica você tem o inimigo interno, que era o comunista, o subversivo. Depois a Escola Superior de Guerra muda os nomes, reformula isso, muda o formato e alguns conceitos. Não se tem mais o inimigo, vira “forças adversas”, “óbices”. São nomes interessantes. Muda-se "sistema de informações e contra-informações" para sistema de inteligência. Os métodos e os processos continuam os mesmos, ou seja, não existe uma integração, como o Astério falou, porque todo mundo quer ter seu próprio dossiê.
Álvaro Lins, abatido por um dossiê
Esse negócio do Álvaro Lins, agora [ex-chefe da Polícia Civil, deputado estadual eleito, acusado nos últimos dias de 2006, pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, de ter conexões com a chamada “máfia do videopôquer”]. Não quero entrar no mérito sobre se ele tem ou não culpa, mas foi um dossiê. Prepararam um dossiê, mandaram não sei de onde e o dossiê foi parar em algum lugar. Aquilo não foi feito pelo Ministério Público, foi um dossiê. Pessoas que estão disputando o domínio da informação…
R.K.L. – Mercadoria.
J.S. – É claro que a ditadura não foi uma ruptura com uma tradição brasileira, mas ela aprofundou esse etos da sociedade brasileira.
Ditadura tirou a tropa dos governadores
R.K.L. – Em todo lugar do mundo, o exército é reserva da polícia, quer dizer, se tem um problema, a polícia vai tentar resolver, se não conseguir, chama a Guarda Nacional. Não resolveu, em última instância chama o exército. Mas são ações diferenciadas e jamais o exército tem a idéia de permanecer na situação. Ele é apenas chamado. Por exemplo, quando inundou Nova Orleans. Tem um final.
O que o Jorge falou é absolutamente correto, mas devemos atentar para o seguinte.
Essas Polícias Militares ou Forças Públicas eram exércitos dos governadores e a quebra que o governo militar fez foi tirar dos governadores e carregar para as Forças Armadas, porque eles eram exércitos particulares dos governadores. Depois, em 1967, é colocada essa tropa sob o seu comando na rua, mas aí inverteram constitucionalmente, inclusive, essa posição, porque a polícia é reserva do Exército. É uma inversão.
J.S. – Não, isso vem desde 1934.
Governo Vargas torturava, censurava
R.K.L. – Sim, esse formato institucional vem do Getúlio [Vargas] e é importante. Fillinto Miller, Getúlio Vargas. Meu pai era um gaúcho metido em todas as revoluções que o Brasil teve, falava dessa polícia do Getúlio, e eram coisas apavorantes que esse pessoal fazia. Tudo isso: tortura, censura, essas pessoas viveram. Obviamente, por ser um ditador populista, ele tinha uma popularidade que o governo militar nunca teve, mas a força policial era muito parecida.
Exército até hoje aprova nomes de Informações das PMs
J.S. – Da mesma forma que houve esse avanço no controle e o acionamento das Polícias Militares por parte do Exército, principalmente a partir de 1967, aconteceu também o seguinte: os governadores dependiam do Exército. Eram nomeados.
Tem mais um detalhe: os governadores não nomeavam sequer o comandante da PM. O secretário de Segurança era uma pessoa colocada pelo governo militar e o comandante da PM tinha que ser submetido ao Comando do Exército para ser aprovado. Até hoje, os serviços de informações da Polícia Militar só são ocupados por pessoas aprovadas por eles.
J.A.B. – Pela IGPM?
J.S. – Não. É um sistema. As Polícias Militares são subagências.
J.A.B. – Estão dentro do que se chama de inteligência nacional.
O “Sistema” da ditadura sobreviveu
J.S. – Sim. Esse foi um dos grandes erros. Isso aconteceu durante o governo do Fernando Henrique Cardoso. Os militares, quando estiveram no poder, não tiveram coragem de fazer o que se fez depois. Instituíram um Sistema de Inteligência Nacional e colocaram a segurança pública como subsistema do sistema. Então, você tem uma Abin (Agência Brasileira de Inteligência), e é a Abin que controla. Institucionalizaram. Um processo kafkiano. De repente, nós estamos aqui conversando, tem um gravador, tem alguém investigando todos nós, ou um de nós. E você não sabe. Tem um processo desse tamanho e você não fez nada. Como é que vai ser? Então, esse modelo, e acho que foi por isso que o Mauro colocou essa coisa da ditadura, isso está aí.
Milícias: difícil cobrir porque aprovação é alta
A.L.A. – Eu queria dar uma contribuição sobre essa questão das milícias. Essa é uma cobertura que a gente está começando, é nova e muito difícil, porque é a cobertura de um tema que a população tem muita simpatia. Eu me lembro que fiz, no início do ano passado [2006], uma reportagem sobre uma milícia em Jacarepaguá, na época a gente nem tratava por esse termo, e há uma aprovação pela população. Pelo que a gente apura, em conversa com a população, há um sentimento, assim como em relação à pena de morte, altamente popular.
Essa é uma cobertura onde, nitidamente, a população do estado está divorciada da média da opinião dos especialistas, dos estudiosos e professores. Esse é um tema altamente popular e toda vez que você vai conversar na padaria, no jornaleiro ou no barbeiro, existe um sentimento de que isso funciona, de que isso é bom, assim como já existiu no passado em relação a esquadrão da morte, a esses grupos de extermínio. Há um sentimento entre a população que é diferente do sentimento que a gente aponta nos nossos veículos.
Espionagem não deveria ser usada em processo criminal
R.K.L. – O serviço de informação, no mundo inteiro, usa sistema de espionagem, de gravação, em nome da segurança do Estado. A grande questão é que essas informações só podem ser usadas pelo sistema de informação em atividades de defesa do Estado. Elas jamais podem se tornar processos contra indivíduos particulares sem que passem por um outro filtro, quer dizer, uma outra maneira de produzir essas informações diante das condições processuais distintas.
Processo inquisitorial e sigiloso
Acontece que o Brasil, desde o século passado, seguindo uma tradição portuguesa que vem das Ordenações [Filipinas], tem um sistema de produção de informações penais que está baseado na chamada inquisitorialidade. Esse sistema, do Código de 40, ainda está presente no inquérito policial. Que traz a corporação da Polícia Civil para esse sistema de informações, paralelo ao inquérito policial. Está escrito no Código de Processo Penal de 1940 que o inquérito policial é inquisitorial e sigiloso.
Esse é um tipo de coisa que se está discutindo muito agora, eu não quero entrar nessa discussão, mas é uma tradição: usar informações obtidas sigilosamente, secretamente, sem o conhecimento da pessoa.
Processos que o réus desconhecem
Muitas vezes, no Brasil, o sujeito, num processo comum, só toma conhecimento de que está sendo processado quando é chamado para ser interrogado pelo juiz, porque o promotor que o denuncia não o entrevistou. É uma coisa que fica todo mundo, no exterior, quando eu falo, abismado: Como é que o cara pode denunciar uma pessoa sem entrevistá-la? Pode. Vai o promotor, olha o que está escrito no inquérito, obtido sem o conhecimento do sujeito, e o denuncia. O juiz aceita a denúncia e chama o sujeito para ser interrogado. O sujeito diz: “Ué, tem um processo contra mim?” E aí começa todo o chamado contraditório e aquele bolo de informações que estão ali e que fundamentam o tal do livre convencimento do juiz.
M. M. – Eu conversei com o Rubens Valente, da Folha, e ele disse que o sigilo é uma das grandes dificuldades do repórter, mas que, além disso, existem réus que pedem para que o processo se torne público e o juiz não autoriza, continua um segredo de justiça. O réu não consegue nem se defender publicamente.
R.K.L. – Exatamente. Eu quero dizer que esse sistema de produção da verdade está inculcado não só no serviço de informação, mas também no processo penal e, portanto, na Polícia Civil. Ninguém estranha isso que eu estou falando. Quem é do metier acha isso uma coisa muito normal.
Sociedade de desiguais
Esse sistema de inquisitorialidade é justificado, do ponto de vista da cultura jurídica, porque nós estamos numa sociedade de desiguais. Então há conflitos nessa sociedade entre pessoas desiguais, e o Estado atua como um intermediário para julgar se esses conflitos são ou não passíveis de ser explicitados, trazidos a público, ou se eles devem ficar escondidos, abafados, reprimidos.
Essa questão de que a sociedade não é uma sociedade de iguais, republicana, está profundamente enraizada no nosso processo penal e é tida pela cultura jurídica… O negócio do Rui Barbosa: a regra da igualdade é tratar desigualmente os desiguais. O discurso do Rui Barbosa, em 1920, diz isso. Ou seja: há desiguais, e eles devem ser tratados desigualmente. O que é diferente de dizer que você deve tratar igualmente os diferentes. Para tratar desigualmente os desiguais é preciso estabelecer a medida da desigualdade. Mas numa sociedade de cidadãos não tem desigualdade jurídica nenhuma óbvia, são todos iguais, então como é que eu vou achar as desigualdades? Onde está essa desigualdade?
Aí você consulta o Código e vê a prisão especial. Aquele monte de gente que tem direitos desiguais. A Polícia Civil é obrigada a obedecer à lei processual, tratando desigualmente pessoas desiguais.
Se eu dou um tiro num cara e o Fulano aqui [indica uma pessoa que estava na sala], que não tem curso superior, dá um tiro no mesmo cara, com a mesma arma, ou na mesma hora, eu vou para um lugar e ele vai para outro. Eu tenho a presunção de inocência e ele não tem, vai logo ser julgado no xadrez, vai ser estuprado, e eu fico lá no batalhão da Polícia, porque eu sou doutor. Prisão especial.
Milícias se apóiam na idéia da desigualdade
A questão das milícias é a idéia da desigualdade. A população aprova a milícia porque ela não acha que aquilo vai acontecer com ela. Aquilo só acontece com os outros. Na hora em que acontece com você…
S.T. – Essa simpatia com as milícias é agora. Daqui a seis meses, um ano, dois anos, muda.
R.K.L. – Começa a acontecer com ele. Quando acontece com ele…
S.T. – A sucursal da Folha funciona na esquina de Santa Luzia com Calógeras, 19º andar. Tem numa galeria embaixo uma deli onde a gente compra uns sanduíches. Eu trabalho nesse prédio desde 1994. Um garoto que trabalha lá há anos, me chama de “Sangue”…
M.M. – “Sangue”?
J.S. – “Sangue bom”.
S.T. – … ele me diz: “Sangue, o negócio tá difícil lá no morro”, me diz o nome de um morro lá em Realengo do qual eu nunca tinha ouvido falar, “tomaram conta lá, botaram os vagabundos pra fora e tão cobrando o gás”, não sei o quê. Eu disse: “Você mora lá?”, “Moro”, ele respondeu. Por coincidência, eu estava apurando para escrever sobre milícia e perguntei se havia receptividade. Ele respondeu: “Não, não há. As pessoas não gostam”. Eu disse: “Mas como é que se estabelece que as pessoas não gostam?” Ele: “No início gostavam, agora não estão mais gostando, porque estão cobrando”. Eu acho que essa simpatia é momentânea.
R.K.L. – Ela é provocada por essa idéia de desigualdade…
M.M. – E também a desigualdade que consiste em você achar que a polícia não existe para você, só para os brancos.
J.S. – E é pior [do que os bandidos].
M.M. – A moça do Vidigal não é a favor dos bandidos, botou o filho no Leme para ele não ficar em nenhuma facção, mas a grande raiva dela era contra a PM. Ela disse: “Você não acredita no que eles fazem. Primeiro, eles liberam tudo. Quer subir para comprar [drogas], compra. Aí, invoca com alguém e pronto. Invocou, acabou”.
Uma coincidência trágica nisso tudo é que “comunidade” é o mesmo nome usado nas comunidades e pela “comunidade de informação”. A gente esqueceu. Saiu um artigo agora de um sujeito da Abin: “… A comunidade…”
Comunidade de “santos” se baseia na impunidade
J.S. – Quem não estiver na comunidade está frito. A comunidade é uma comunidade de santos. E como é que você consegue ter uma comunidade de santos em que os santos sejam sempre santos? Porque os santos podem fazer quaisquer coisas e nunca vai aparecer porque eles são santos. Então, pode roubar, pegar dinheiro de empresário que, se for da comunidade, não vai acontecer nada.
M.M. – Para mim fica parecendo o seguinte: o padrão da Baixada, dos grupos de extermínio com bicheiro e os donos do poder locais, veio para o Rio, via Zona Oeste, com Castor [de Andrade, bicheiro importante] e descendentes. Aquilo que se falava da Baixada chegou dessa forma aqui e você teve uma “baixadização” da situação do Rio.
E então temos um chefe de Polícia acusado de ser bandido. Eu chamo a atenção para o fato de que há polêmicas em relação a isso. Eu tenho uma pilha de jornais aqui onde não há a menor hesitação: “Álvaro Lins é o culpado”, “o maior bandido do mundo”, mas tem gente que diz que não é, que ele está sendo vítima de uma briga interna.
“Não tem ninguém puro na Polícia”
R.K.L. – Sem querer me meter na vida do Álvaro Lins, porque não é da minha competência, eu não sou da Polícia, há uma questão aí que é muito complicada e passa pela questão da corporação. O problema é o seguinte: não tem ninguém puro na polícia…
M.M. – Isso eu já sei há anos…
R.K.L. – Pois é. É isso que o Jorge falou: de vez em quando você pega um…
Há milícias também nos bairros
J.S. – Uma coisa que aprendi com o Kant, ele não está se lembrando aqui, mas vou falar por ele, é o seguinte: tem dois eixos, o eixo formal, das leis, e o eixo da informalidade. Você usa esses dois eixos indistintamente. Você pode usar o eixo informal para prejudicar e para proteger. “Vamos pegar quem, agora?” “Quem é que está mais fraco no sistema?” “É o fulano.” “Então, vamos pegar o fulano.”
Aí, o sistema vai formalmente e outros tão problemáticos, ou piores, não vão ser atingidos.
Quero voltar ao assunto corrupção policial, milícias. As milícias não estão implantadas só nas favelas. Nos bairros onde há casas, por exemplo, em Realengo, no bairro da minha irmã, chega lá um sujeito, PM ou ex-PM, que a pessoa me disse que tem mais cara de bandido do que de polícia – se bem que são bem próximos – e diz: “Nós vamos colocar a paz aqui, vocês vão poder dormir com a janela aberta, cada casa dá 25 reais e o comércio, 50”.
Zona Norte, Zona Sul, São Paulo… há muitos anos
S.T. – Isso está se disseminando. Cachambi… Começou em Jacarepaguá, Madureira, Cascadura e está vindo.
J.S. – Mas é que a gente está falando só em favela e está perdendo de vista isso.
M.M. – Botafogo, perto do Morro Dona Marta, final da década de 1980. Uma pessoa que morava no Humaitá foi procurada, como outros moradores, todo mundo pagava para o malandro que fazia esse papel. Rua Albuquerque Lins, em São Paulo, Higienópolis, começa “nobre” e termina na Praça Marechal Deodoro: na década de 1990 eles fizeram uma onda de assaltos e depois apareceram [para vender proteção].
S.T. – Fizeram isso no Leme, também.
J.S. – E ai de quem não pagar. Numa rua, todo mundo paga. Quem não paga fica complicado.
M.M. – A “baixadização” já chegou.
J.S. – Sim, mas o que eu estou dizendo é que a discussão está muito em cima das milícias nas favelas.
J.A.B. – É bom lembrar: embora esse processo seja antigo, é a segurança clandestina. Agora, vem a milícia mesmo, que está na favela e vai indo para outros lugares.
Traficante e consumidor
J.S. – Como é que se faz para distinguir o traficante de drogas do usuário de drogas? Você tem lá o Art. 12: “Trazer consigo substância entorpecente…”, pena: dois a oito anos. Art. 16: “Trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente…”. Como é que, na prática, você distingue quem é infrator do Art. 12 e do Art. 16, distingue traficante de usuário, se não é pela quantidade? Será que alguém aqui tem dúvida de como é que se faz a distinção?
S.T. – Pobre é traficante. Rico é consumidor.
J.S. – Mas as pessoas acham que nisso só tem um olhar. Qual é o olhar que essas centenas de milhares de presos têm dessa questão? Qual é o olhar dos presos que não têm curso superior, que não são um Pimenta Neves, que não vai ser preso nunca, matou covardemente a namorada, qual é a visão que as pessoas que estão lá dentro têm de tudo isso? E isso parece que é uma coisa natural. Como é que isso volta?
S.T. – Com mais violência…
Caveirão: apavora uns, entusiasma outros
J.S. – Por exemplo: discussão dos Caveirões [blindados da tropa de choque da PM]. Eu fui ouvir as pessoas para a minha tese. [Clique aqui para ter acesso à tese de doutorado de Jorge da Silva, em pdf.] Você conversa com todos os moradores de favela e eles têm todos uma visão do Caveirão. Você conversa com praticamente todas as pessoas de fora de favela e elas têm uma visão diferente. E aí, como é que faz? Os favelados são minoria? Os favelados do Rio de Janeiro são minoria?
Em termos quantitativos, não são. Em relação a um grupo… Na minha tese tem até os números. Por exemplo, no eixo Copacabana–Ipanema–Leblon–Lagoa–Barra, a população ali residente é menor do que a população de três, quatro favelas da Zona Sul. E aí?
Firjan tocou as trombetas da “guerra”
Você tem um discurso de lei e ordem cujo ponto máximo foi quando a Firjan [Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro], de 2004 para 2005, publicou durante dois dias seguidos um chamamento à guerra. A Firjan diz que reuniu especialistas e a solução dos especialistas era chamar Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia, para fazer uma repressão “total”. Total. Matéria paga de dois dias.
A Firjan, que é representante da classe produtiva do estado, de um país em que o setor financeiro penaliza o setor produtivo e esse setor produtivo, ao invés de reclamar sobre esse modelo que privilegia o setor financeiro, não. O problema é a violência. A pergunta é a seguinte, e a gente tem que ir para Maquiavel: dá para resolver isso com a força? A cidade partida. Sim, e aí? E os hospitais? Sim. Como é que faz? E a segurança? Vamos então chamar a Força Nacional. Vocês sabem o que é a Força Nacional?
M.M. – A Folha até dá um editorial dizendo assim: “…foi treinada em Brasília”. Não foi treinada em Brasília.
Treinamento em favela
S.T. – Um grupo foi treinado no Rio. A Força tem 7.600 homens. Oitocentos foram treinados no Rio de Janeiro. Por que não vêm para a rua? Por que vão para a divisa? Porque não têm treinamento para morro, para favela, para confronto, para tiro.
J.S. – Espera aí. A Força que veio para o Rio foi treinada onde?
S.T. – No Bope.
J.S. – Não, nas favelas.
S.T. – Sim, mas 800 de 7.600.
J.S. – Quando eles resolveram fazer um treinamento, não sei se depois houve uma outra leva, a primeira leva que veio ser treinada no Rio, 200, isso está na minha tese, eu tenho os números, inclusive as mulheres, foram 14 mulheres.
M.M. – A imagem do treinamento que a TV Globo usa é essa aí na favela…
J.S. – Vieram para treinar com a tropa que se considera a melhor tropa de combate em favela do mundo, dito e verbalizado por eles. E onde foi feito o treinamento? Nas favelas. Outra coisa: a Força Nacional é uma força virtual, ela não existe.
S.T. – Ela não tem um quartel, eles não estão lá esperando ser chamados, estão cada um no seu canto.
Os números da Força Nacional
J.S. – Cada um no seu estado. Esse é um dado que vocês, que estão trabalhando nos meios de comunicação, devem estar muito atentos: quantos virão?
S.T. – Não está decidido, ainda.
J.S. – Quantos virão? Vão trabalhar 24 horas ou vai ter uma escala de oito horas por dia para dividir o efetivo em três?
M.M. – Tirando antes 8%, que todo efetivo tem 8% de defecção [doença, licença, férias].
J.S. – Então, pergunto: se vierem 200, vocês sabem quantos têm por dia?
M.M. – Duzentos vezes oito por cento são dezesseis, diminui, 184, divide por três. Sessenta.
J.S. – Quando os duzentos chegarem, você tem, na verdade, sessenta caras, num estado em que há quase 50 mil policiais. É uma maluquice!
M.M. – Não faz sentido! A imprensa não poderia tratar isso a sério, deveria sempre esclarecer: “São 200 homens. Cada turno, 60 homens”.
J.S. – Mas não pode dizer, porque é psicológico.
Repórter tem que brigar dentro da redação
M.M. – Tem outro problema muito relevante. O repórter, dentro do veículo, vai ter que brigar contra uma percepção que já está estabelecida. Em todos os veículos tem um senso comum que paira. Eu acho até que a Folha e o Globo são permeáveis, o Estadão também, mas se o repórter não berrar, se ele não chegar lá e disser: “Mas, doutor, não é isso…”, ele vai chegar e escrever a matéria que está na cabeça do sujeito que não sabe nada disso, mas segue um senso comum da classe média. Foi isso que discutimos aqui. Aliás, começamos a discutir, porque tem muita coisa ainda para ser trazida à tona.
Estatísticas: destacar o que é negativo
J.S. – Eu fui presidente do Instituto de Segurança Pública. [Dirige-se a Jorge Antônio Barros:] Você estava lá quando eu fui falar com [Aluízio] Maranhão [editor de Opinião do Globo]. Quais são os crimes que mais incomodam a população, aqueles que a gente chama de convencionais? Vamos botar um número cabalístico. Dez. Fizemos um levantamento estatístico e realizamos um trabalho em cima desses tipos de crimes para ver se conseguíamos diminuí-los. Começamos o trabalho e houve, no início do governo do Garotinho, um esforço muito grande. Ele colocou quase 15 mil novos policiais e realmente a coisa começou a ser contida. Eu comecei a perceber que toda vez que eram divulgados os dados, o jornal O Globo pegava sempre o dado que tinha aumentado. Dez dados, nove baixaram, um subiu. Era sempre esse que saía. Fui falar com Maranhão e ele disse: “É assim mesmo que funciona”.
S.T. – Não funciona só no Globo, não.
J.A.B. – Mas a gente até mudou um pouco essa visão… Esse trabalho seu foi interessante, nós fizemos uma reflexão.
Truque para pautar a mídia
J.S. – Mas também mudou sabe por quê? Sabe o que eu fiz? Pela minha experiência com os meios de comunicação, de muitos anos, fui assessor de Comunicação Social da PM, saquei que o pessoal não tinha muito tempo. Os dados saíam todo mês. Eu disse: não deixa sair para ninguém. Na véspera eu levava para casa e preparava o informe. Marcava reunião às 16 horas [ri]. Chegava todo mundo, eu: “Para você, para você, para você”. Não dava tempo de trabalharem. A visão que passava era a minha.
Visão negativa é realista
J.A.B. – A gente tem que questionar realmente essa visão que a imprensa tem, muito negativa. Existe uma cultura nossa, dos jornalistas, de sempre enfatizarmos o aspecto negativo. Isso está implícito, por vários motivos. Na questão da violência, eu acho realmente que essa vai ter que ser a lógica para a gente poder melhorar a situação, porque quanto mais a gente encobrir o que está acontecendo, mais chances tem da situação ficar do jeito que está. Então, eu acho que quanto mais você traz, essa é uma vantagem que a cobertura do Rio tem em relação à de São Paulo. Como o André colocou, o Rio sempre trouxe à tona seus problemas [ver a primeira parte deste debate], sempre os encarou mais, São Paulo, não. Em São Paulo, a onda de terror foi muito maior lá e eu tenho a impressão de que também é resultado desse caldo de cultura, as coisas estavam muito mais abafadas.
M.M. – E não é questão geográfica, não. É jornalística.
Tradição opinativa da imprensa paulista
J.A.B. – É cultural. Histórica. A tradição da imprensa de São Paulo é ser uma imprensa opinativa. Isso é desde os barões do café. Eles foram descobrir a reportagem no começo do século XX. No Rio, desde o D. João VI que se faz reportagem. Os paulistas detestam isso, mas o meu pensamento é esse.
Essa questão da violência, eu achei que a estatística foi fundamental para a gente, foi um dado novo. A gente tem que ressaltar que o governo Garotinho teve um aspecto positivo que foi buscar a transparência. Se ainda não se conseguiu a transparência com os números da violência, já se andou bastante nessa direção. Antes, isso não tinha periodicidade, não tinha obrigação nenhuma, esses números eram manipulados, a divulgação deles era de acordo com os interesses particulares, a ética da particularização sempre predominou nessa área de estatística criminal.
Estatísticas vendidas para seguradoras
S.T. – Tinha gente que vendia a informação.
R.K.L. – A briga para divulgar esses números, e eu acompanhei isso pessoalmente, era porque as pessoas se apropriavam e vendiam para as companhias de seguro.
J.A.B. – E eles manipulavam isso, para poder fixar o preço do seguro.
R.K.L. – Exatamente. Vai sair no jornal como, se é a grana dele? É a transformação contínua desses dados em mercadoria, através dessa apropriação particularizada.
Recém-eleito cai nas boas graças da mídia
M.M. – Um governador que parece mais simpático, mais afinado, ou menos desafinado, menos antagônico em relação à mídia, começa-se a dar a ele um crédito de confiança que não se daria a outro. Para mim, isso está claro no noticiário sobre o Sérgio Cabral. Eu fiz uma gozação no programa de rádio do Observatório: “Cabral descobre o Rio”. O Cabral, que já foi presidente da Assembléia, agora descobriu o Rio. A caravela do Cabral chegou ao Rio…
J.A.B. – Essa tendência do noticiário eu acho que está claramente ligada à questão eleitoral. Quem acabou de ser eleito está com prestígio eleitoral. De um modo geral, os jornais embarcam nesse prestígio.
M.M. – Não é só isso. Tem política também, tipo: “Esse não vai ser antagônico”.
No início, Garotinho teve boa mídia
J.A.B. – O Garotinho também teve muito apoio da imprensa no começo, o senhor lembra, coronel? Na área da segurança, ele trouxe novidades que tiveram a maior repercussão na imprensa. Era uma visão positiva. Porque para mim isso está ligado à questão eleitoral [ao fato de ter sido eleito].
J.S. – Naquele episódio da saída do Luiz Eduardo [do governo Garotinho] tem um detalhe. O Luiz Eduardo veio de onde? Ele veio do Viva Rio. Então, você sabe como é o Viva Rio…
J.A.B. – O Viva Rio sempre teve apoio dos setores de imprensa, da classe média, especialmente das Organizações Globo.
J.S. – A partir dali, o Garotinho começou a cair em desgraça.
Garotinho e a Mangueira: do diálogo à repressão
O Garotinho também fez muita bobagem. Uma das maiores: começou o seu governo, a PM foi ao morro da Mangueira e houve lá um tiroteio. Ao que tudo indica, foi realmente uma ação desastrada da Polícia, ou pelo menos preconceituosa, porque feriu um garoto que não tinha nada a ver com a história. Ele pediu desculpas à comunidade. Anos depois, no governo da mulher, como secretário de Segurança, ele começa a enquadrar por associação ao tráfico os moradores que se rebelavam quando a Polícia entrava praticando violência. Naturalmente, eu imagino, para fazer média com determinados setores. E acabou ficando mal com todo mundo. Não ia conseguir mesmo nada com as camadas mais altas, já estava carimbado que não ia ter, e perdeu o apoio da comunidade.
R.K.L. – Em São Paulo, na véspera de acontecerem os primeiros ataques do PCC [maio de 2006], houve um programa feito pela Universidade Bandeirantes, na Faculdade de Direito, sobre segurança pública. O diretor da Faculdade é aquele promotor que ficou famoso por indiciamento em estádio de futebol, [Fernando] Capez, mas nesse momento ele estava lá como diretor da faculdade.
Em São Paulo, numa faculdade de Direito, pedem mais repressão
Eram ele, eu, um sociólogo da USP, [Leandro] Piquet Carneiro, e um cientista político da USP, Paulo Mesquita. Eles passaram um filme e o auditório estava lotado de alunos, professores, fizeram perguntas. Para minha surpresa, tanto o Capez como o sociólogo só se referiram a medidas repressivas para enfrentar a violência. Quer dizer, a violência estava acontecendo por falta de repressão. O Mesquita, que é muito educado – diferentemente de mim [risos] –, começou a falar: “Mas os presídios estão tão cheios. Se for diminuir a idade e pôr mais gente, vai encher mais. Onde é que vai botar tantas pessoas?”, disse Mesquita. “Prende, constrói”. Juro que a coisa era meio ridícula. “Mas tem que treinar os guardas penitenciários. E tem os turnos”. Precisaria de não sei quantos mil guardas penitenciários. E começaram a fazer conta.
Eu fiquei muito impressionado com aquilo e comecei a gozar da cara de todo mundo. Comecei a brincar, a platéia ria muito, resolvi avacalhar, mesmo. No outro dia, eu cheguei aqui no Rio e a onda de ataques já estava no noticiário. Era uma faculdade de Direito, veja só. Tinha um promotor de Justiça, um sociólogo, um cientista político que, mal ou bem, estava falando coisas importantes, mas não deixavam o Paulo Mesquita falar.
Nada sobre dinheiro em cultura, ensino, saúde
Ninguém fala em botar dinheiro em outra coisa, cultura, ensino e saúde.
Como é que pode as pessoas acharem que num país onde a desigualdade jurídica é assim escancarada, porque está escrita na lei… Isso é um caso sério, porque a igualdade jurídica é uma conquista do século XVIII para o mercado poder desigualar. Você cria essa invenção de dizer que as pessoas são iguais para o mercado poder dar porrada em todo mundo, mas quando você diz que as pessoas são desiguais juridicamente, elas não têm jeito de ser iguais, porque o direito está dizendo para elas: Você pode fazer o que você quiser, que você vai ser desigual. Como é que essas pessoas que têm direitos desiguais vão ter consciência de deveres iguais, obediência a regras e a leis que não os tratam da mesma maneira?
Accountability só é possível entre iguais
A questão da accountability é essa. Accountability só é possível entre iguais, quando essa responsabilidade é universalizada, porque se ela não for universalizada vem o negócio da culpa. Eu escolho o culpado. Mas enquanto eu sou igual a todo mundo, eu posso ser responsabilizado pelas minhas escolhas, porque eu tive oportunidade de fazê-las. Se eu não tenho possibilidade de fazer escolhas, eu não posso ter responsabilidade. E numa situação de desigualdade ele não tem oportunidade de fazer escolhas. Onde ele vai aprender a ser civilizado, no sentido de civil, cidadão? Quando? Isso vai sair de dentro da terra? O cara nasceu, não tem escola, não tem serviço de saúde, só tem polícia e traficante, ele nem sai do lugar onde mora. Não sai.
“Se fossem dois garotos brancos, ninguém ia dar tiro neles”
J.S. – Se saírem, são perseguidos. Se ele vai para a Praia de Ipanema, é denunciado pela cor. E o favelado tem a mania de andar em grupo. Em grupo, então, fica todo mundo apavorado… E vira “arrastão”.
M.M. – Não estudaram direito até hoje essa história do arrastão. Essa matéria não foi feita até hoje.
J.S. – Uma coisa que eu aprendi na minha dissertação de mestrado: esse negócio dos arrastões, sabem por que eles fazem? Eles não sabem que o pessoal tem medo? Então, um grupo de quatro, cinco garotos já sabem e, quando chegam perto das pessoas, elas saem correndo. Eles fazem isso só para apavorar as pessoas, eu escutei isso de vários. Fazem de molecagem.
S.T. – Foi o que eles fizeram no ônibus [dois garotos disseram que iam colocar fogo num ônibus, no Rio, no dia seguinte à onda de violência, em dezembro, e foram mortos por um passageiro armado]. Se fossem garotos brancos, ninguém ia dar tiro neles.
(Transcrição de Raiana Ribeiro.)
Leia também a primeira parte do debate.
Clique aqui para ler o segundo debate, realizado em março e publicado em junho de 2007.