Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Denunciar tortura é difícil’, diz repórter

Um universo concentracionário dantesco, com muita corrupção das autoridades e violência sem freios, emerge das páginas de um livro publicado em junho de 2005 por Josmar Jozino, repórter de Polícia do Jornal da Tarde: Cobras e Lagartos – A vida íntima e perversa nas prisões brasileiras. Quem manda e quem obedece no partido do crime. Ganhou menção honrosa do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos de 2005. Josmar não sabe quantos exemplares foram vendidos. Seu contrato com a editora (Objetiva) mencionava 2.500 exemplares. Saíram duas edições, a primeira um mês depois da segunda. Mas houve uma aceleração das vendas em maio de 2006, após os ataques do PCC em São Paulo.


Em entrevista ao Observatório da Imprensa, Josmar revela que é difícil denunciar tortura nas cadeias e nas unidades da Febem em reportagens nos jornais porque, como ouviu de mais de um editor, que preso e Febem “não vendem”. Que o seqüestro de algum repórter da Rede Globo de Televisão já havia sido proposto por um chefe do PCC em fevereiro de 2002. Que o uso do crack e estupros foram proibidos nas cadeias paulistas não pelas autoridades, mas pelo PCC. Que Que os bandidos até hoje só não cometeram atentados de maior gravidade, como um planejado ataque contra a estação de metrô do Jabaquara, porque talvez os encarregados de fazer as ações sejam incompetentes. Não sabem nem tirar pino de granada, disse a Josmar um policial; não sabem ler instruções. “Imagine no dia em que souberem”, inquieta-se o repórter.


Como foi a recepção do livro dentro das cadeias?


Josmar Jozino – O nome foi mal recebido. “Lagarto” é um preso que não tem moral, não tem “proceder”. Depois entenderam o contexto: eu me referia aos “generais” e aos “soldados”. Mas vendeu pouco. Alguns passaram seus exemplares para outros. Preso não tem dinheiro para nada. A família nem consegue viajar.


Quanto custa o livro?


J.J. – R$ 44,90.


O livro não foi suficientemente divulgado?


J.J. – A editora tem uma boa assessoria de imprensa. Mas eu não quis dar entrevistas para televisão. Falei só com emissoras de rádio. CBN, Eldorado. O Jornal do Brasil publicou um material muito bom, da Norma Couri. Três páginas no Caderno B. Ela ouviu também o diretor de Fotografia do filme Carandiru. E havia uma resenha do livro.


O Estadão deu?


J.J. – Uma matéria de 20 ou 30 centímetros. O Diário de S. Paulo [onde Josmar trabalhou muitos anos] não deu uma linha. No período dos ataques do PCC [maio a agosto de 2006] o livro ajudou em muitas pautas de rádio, de jornal. Mas não antes. Ninguém falava dele. Outros que compraram o livro foram estudantes de Direito e de Jornalismo, juízes, promotores, policiais. Algumas mulheres de presos. Eu enviei alguns exemplares para presos que me pediram o livro.


Mudou alguma coisa depois dos ataques?


J.J. – Fui procurado por praticamente todas as emissoras de televisão, mas não falei. Dei entrevista para a Rádio Itatiaia, de Belo Horizonte, e para uma rádio do Rio Grande do Sul. Fui procurado por faculdades: PUC de São Paulo, USP, Unicamp. Também por muitos representantes de entidades ligadas a Direitos Humanos. Com alguns falei, com outros, não. Evitei a televisão e certos contatos até por uma questão de cautela. Foi orientação do jornal.


O senhor concorda com a idéia de que as deficiências da cobertura jornalística são um ingrediente da insegurança pública?


J.J. – A violência chegou a um ponto tão grave que surgiram vários programas de televisão especializados. Mais jornais foram lançados. Em alguns momentos, a imprensa tende a fazer cobertura só quando se trata de alguém que tem posses – seja vítima ou acusado. Foi o caso do coronel Ubiratan [Guimarães, assassinado em setembro]. Às vezes há uma chacina de 10, 15 pessoas num bairro pobre e o tratamento é bem diferente.


Há pouco tempo, na Cidade Tiradentes, apareceram quatro corpos queimados: a mãe, dois filhos, mais um terceiro no útero. Bairro pobre, ninguém foi cobrir. Eu fui sozinho. Poucos dias antes um pai matou três filhos e se suicidou em Alphaville. Três dias de notícias. Mas também há pouco, na mesma Cidade Tiradentes, um homem fez a mulher e o amante dela de reféns, acabou se matando, todo mundo deu. Será porque havia imagens [mais chamativas]?


Houve há dias [a entrevista foi feita em 30 de novembro] um caso de roubo de cargas em que a Polícia foi acusada de fazer a escolta. Ninguém deu.


É difícil responder em relação ao papel da mídia, de modo geral.


E os jornais impressos?


J.J. – O espaço para matérias de Polícia diminuiu muito, embora a violência tenha aumentado. No Diário Popular [hoje Diário de S. Paulo] chegamos a ter 13 repórteres de Polícia, um editor, dois subeditores, dois fechadores. Dávamos quatro páginas por dia, mais uma sobre Justiça. Hoje, a cada quatro dias sai uma página. Será que é a crise do papel? Quando acontece alguma coisa em Moema ou outra área nobre, o assunto é prioridade.


Quais são as principais falhas da cobertura jornalística?


J.J. – O Estado não oferece trabalho para o preso, educação para o preso, e a lei prevê isso. Os presos vivem em presídios superlotados. Onde cabem 12, tem 40, tem que revezar para dormir. A mídia não se preocupa com isso. Ela acha que o preso tem mesmo que cumprir a pena, ficar isolado, sofrer, e acabou. Depois desses ataques do PCC eu vi que a mídia começou a se preocupar um pouco com a situação do preso. Mas porque São Paulo parou e eles viram que foi uma situação de terror. Então eles ficaram com medo. Mas não preocupados com a situação do preso… Famílias que não têm dinheiro para viajar 600, 700 quilômetros…


A mídia acompanha as mudanças no mundo do crime?


J.J. – Acho que está acompanhando, sim, essas inovações criminosas. O avanço tecnológico, bandidos usando internet, droga sintética. Acredito que as facções criminosas, agora, de São Paulo e do Rio, também já estão entrando nesse novo esquema de tráfico. Não sei se para eles é mais fácil e se oferece menos risco, ou se é mais lucrativo comercializar essas novas drogas sintéticas. Novos golpes eletrônicos, cartões de banco, sistema de telefonia que eles estão usando.


Em que medida os chefes do PCC são politizados?


J.J. – Dessa liderança, uns dez presos são politizados, têm consciência, até se esforçam para agir politicamente, principalmente em ano eleitoral, que é quando costumam ocorrer problemas maiores. Sabem que o PCC sozinho pode desestabilizar uma candidatura. O resto dos chefes, não. Nem lêem.


Mas em que medida cabe chamar o PCC de “partido”?


J.J. – Como os partidos políticos, tem hierarquia, leis, regras, privilégios. Expulsa quem não pensa de acordo com os chefes.


O PCC deu instruções para que houvesse ataques contra o PSDB e o PFL?


J.J. – Deu, sim. Estava na mensagem do Mizael [Mizael Aparecido da Silva, já morto] encontrada em Bangu I com data de 12 de fevereiro de 2002.


A frase final, publicada em seu livro, é “Lembre-se: os seqüestráveis são apenas do PFL, PSDB e repórteres”. Por que essa preferência política?


J.J. – Imagino que seja porque as autoridades estaduais, responsáveis pela segurança pública e o sistema penitenciário, são ligadas a esses partidos. A mensagem não parava aí. Dizia “repórteres da Globo”. Na época, ninguém divulgou isso, por motivos óbvios. Eu também não publiquei no livro.


O senhor concorda com a visão de que esses presos passaram a usar a organização, nascida como uma espécie de autodefesa contra maus-tratos, como lucrativa plataforma criminosa?


J.J. – Sim, usaram para outras atividades. E não estão parados. Já nem usam mais centrais telefônicas. Agora têm a seu serviço empregados de prestadoras de serviços que mexem em “armários óticos” em ruas do Morumbi, como se noticiou recentemente.


Ao relatar a tortura de um preso chamado Avenito Aurora da Silva, morto numa dependência do Carandiru chamada de “DOI-Codi”, o senhor escreveu que “Avenito nunca foi comunista, mas seu caso é semelhante aos dos presos políticos torturados até a morte nos porões da ditadura militar”. O senhor diria que existe uma linha de continuidade na Polícia desde a ditadura, como existiu entre o Estado Novo, para não ir mais longe, e a ditadura?


J.J. – Talvez remanescentes da ditadura militar estejam dando aula na Academia de Polícia. Os métodos de tortura deixaram raízes na Febem, na Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Até hoje recebemos denúncias contidas em cartas de presos e em relatos da Pastoral Carcerária.


Os jornais não parecem dar o destaque devido a esse assunto.


J.J. – Para publicar uma denúncia de tortura é um sacrifício. Já ouvi chefe, em mais de uma redação, falar: Não vende. Preso e Febem não vendem. Que se danem. Mas, se algum concorrente dá, você é imediatamente cobrado…


O Jornal da Tarde publica?


J.J. – Publica, de acordo com as possibilidades.


No seu livro, o senhor descreve planos para grandes atentados, como um ataque contra a estação de metrô Jabaquara e a derrubada de torres de transmissão de energia em São Paulo. Por que o PCC até hoje não conseguiu realizar esses planos?


J.J. – Talvez porque as pessoas que estão na rua cumprindo instruções do PCC não saibam fazer. Uma vez um policial me disse que a sorte da Polícia é que esse pessoal não sabe nem tirar pino de granada. De fato, houve vários ataques com granadas a postos policiais em que as granadas não explodiram. Às vezes têm dificuldade de leitura. Em 2002 o PCC mandou atacar o Sindicato dos Agentes Penitenciários. Atacaram o Iprem (Instituto de Previdência Municipal), ao lado do prédio do Deic (Departamento de Investigações Criminais). Imagine o que pode acontecer no dia em que souberem atacar.


O senhor diria que o PCC está enfraquecido? É a sensação passada pela redução drástica do noticiário a respeito do grupo nos últimos meses.


J.J. – Não acredito. Nem enfraquecido, nem desarticulado. Estão unidos. E cada vez que o Estado endurece contra eles, eles se unem mais. A imprensa quer acreditar que estão enfraquecidos. Estão aguardando para ver qual será a política do novo governo estadual.


O senhor descreve como um canadense condenado pelo seqüestro do empresário Abílio Diniz em 1989, David Spencer, foi o cérebro que orientou o PCC para operar centrais telefônicas. O senhor considera relevante essa convivência?


J.J. – Sem dúvida. O que você acha que faz o [Maurício] Norambuena [chileno condenado pelo mesmo crime, recentemente livrado do regime disciplinar diferenciado, uma solitária em que a pessoa fica 23 horas presa]? É como na Ilha Grande [Rio de Janeiro, durante a ditadura], em Taubaté, também ouvi que presos políticos conviveram com presos comuns na Penitenciária do Estado [antigo Carandiru]. É como uma redação, qualquer empresa. O sujeito transmite aos outros o que sabe.