Apenas por relatar atos e palavras, os dois principais jornais paulistas podem ter dado três motivos de desgosto aos seus leitores. A mim pelo menos deram.
As duas primeiras razões de desgosto estão nos dois jornais. Em ambos os casos, pelo destaque, mais no Estado do que na Folha. Em ambos os casos, os causadores do desgosto são políticos. Um, do PT. Outro, do PSDB. Um, falando para vereadores do partido e na reunião do seu diretório nacional. Outro, falando em um encontro estadual da sua agremiação.
O primeiro falante é o superministro José Dirceu. O segundo, o ex-presidente Fernando Henrique. Dirceu repetiu praticamente com as mesmas palavras o que os tucanos diziam quando eram governo e ele, oposição. Fernando Henrique se esqueceu de se dar o respeito e foi rolar com o inimigo no rés-do-chão.
Do petista: “O verdadeiro caráter da CPI [dos Correios] é para desestabilizar. Querem desestabilizar o governo a partir do Congresso… Essa tentativa de me envolver [alusão a declarações atribuídas a ele pela Veja] chega a beirar o golpismo… A oposição quer ganhar no grito… Estamos vivendo uma tentativa de criar uma crise…”
Isso é terrorismo político.
Crise, se existe, é porque as relações entre o governo e os seus aliados entraram em parafuso, porque o PT entregou de mão beijada a presidência da Câmara ao deputado Severino e porque desde então Executivo e Legislativo andam se estranhando (apesar das concessões de Lula a Severino).
O mau jornalismo da Veja não beira o golpismo. Beira o tabloidismo, com um rato na capa da edição; com a afirmação, baseada numa única fonte e bancada como pura verdade, de que Dirceu teria dito que “é impossível que uma CPI minimamente bem feita não pegue o Delúbio [Santos, tesoureiro do PT] e o Silvinho [Sílvio Pereira, secretário-geral]; e com o título “A pior crise de Lula”. A pior crise de Lula foi o Waldogate, que acertou Dirceu no fígado e, dependendo do Supremo Tribunal, ainda pode dar em CPI.
O verdadeiro caráter da CPI que o PT quer impedir não pode ser definido de antemão; será aquele que resultar de seu andamento. Não há nenhuma força política, social ou econômica que valha o seu sal interessada em desestabilizar o governo Lula. Mas o PT quis, sim, desestabilizar o governo Fernando Henrique. Lançou a palavra de ordem “Fora FHC”. O atual ministro da Educação, Tarso Genro, de quem se pode dizer tudo, menos que é um incendiário, defendeu na Folha o impeachment do então presidente.
E este, quando virou ex, assumiu a expressão corporal de quem queria se tornar o primeiro “elder statesman” brasileiro, o sábio estadista encanecido que empregaria o seu vasto patrimônio cultural e de prestígio internacional para entrar no restrito clube de que fazem parte, cada qual a seu modo, o americano Jimmy Carter, o espanhol Felipe Gonzáles e o israelense Shimon Peres. Falou-se que ele poderia vir a ser o próximo secretário-geral das Nações Unidas.
Durou pouco, no entanto, a fase estadística do ex-presidente. Achando que o PSDB pegava leve demais no governo, não apenas se enfiou no varejo da política, mas o fez de uma forma rombuda que não lhe faz justiça. Para isso já basta o líder tucano no Senado, Artur Virgílio.
De radicalização em radicalização, chegou a falar em “crise institucional”, tendo agora que explicar que o risco não é real e presente, mas de “médio ou longo prazo”, se o que ele acha que deve acontecer na política não acontecer.
De degrau em degrau, mandando às favas os cuidados que sempre pregou para a civilidade do debate público, tendo em vista o aperfeiçoamento da democracia brasileira, desceu ontem a um patamar constrangedor.
Depois de dizer que “parece que os vampiros voltaram e entraram nos Correios”, resolveu ser tão infeliz como Dirceu com a sua alusão à beira do golpismo. “Não é vampiro, é cupim, está em todo lugar”, corrigiu-se FHC, sugerindo que o governo Lula está carcomido por inteiro pela corrupção.
A essa altura, ele já tinha viajado na retórica, misturando metáforas. Textualmente, como saiu na Folha: “Estamos num momento em que todos se olham e se perguntam qual é o rumo?… O que vão fazer conosco? Ou vão simplesmente jogar a culpa no passado, derrotados como peru bêbado em dia de Carnaval?”.
Enfim, o terceiro e mais fundo desgosto do dia. Está na matéria da Folha, que merece o clássico comentário: se você tivesse que ler um e apenas um dos textos dos jornais de hoje, é este.
Trata-se da estupenda reportagem de página inteira “O morador de rua que irritou um bairro e acabou no Pinel”, com o antetítulo “Estranho no Paraíso / Sem-teto de 68 anos foi varrido da Vila Nova Conceição”.
Assinada pela repórter Laura Capriglione e pela repórter-fotográfica Marlene Bergamo, merece receber por antecipação o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos de 2005. O prêmio contempla todos os anos, no aniversário da morte do jornalista, as melhores produções jornalísticas do gênero.
A história é um horror. Com poucos adjetivos e advérbios, mas muitos, muitos substantivos, conta o drama de um morador de rua cuja presença nas imediações de prédios chamados, em um novo-riquismo atroz, Château Margaux e Château Lafite, era intolerável para os seus residentes, capazes de pagar até R$ 14 mil mensais só de condomínio.
“Manoel Menezes ocupava, na praça em frente aos edifícios, área equivalente à de um quadrado de 1,5 metro de lado”, informa a bem-apurada matéria.
A espetacular reportagem é de estragar o domingo de quem ainda conserva o senso elementar de decência humana – cada vez mais raro neste país de cidades monstruosas e índices recordes de desigualdade.
Termina dizendo que Manoel “não sabe por que está internado [à força, como demente, no Hospital Psiquiátrico Pinel, de Pirituba], nem quanto tempo assim permanecerá, nem qual será seu tratamento”.
E arremata: “A nova vida, longe da praça e agora recluso, Manoel Menezes, negro, inaugurou exatamente numa sexta-feira, dia 13 último. Era o Dia da Abolição.”