A rigor, nem é preciso ser petista: basta não ter calos na alma para se sensibilizar com o drama político que está perto de chegar ao seu ponto culminante, ou no Supremo Tribunal, ou no Congresso Nacional.
Trata-se, evidentemente, do destino do deputado José Dirceu.
Se o STF rejeitar hoje o pedido do ex-ministro para dar fim ao processo aberto contra ele no Conselho de Ética da Câmara — Dirceu alega que não exercia o mandato de deputado quando dos supostos delitos de que é acusado —, a sua cassação é praticamente certa.
Com isso, o ex-presidente do PT [entre 1995 e 2002] não poderá disputar eleições até 2015, quando estará com 69 anos.
Eu não queria estar na pele de nenhum dos 10 ministros do Supremo que decidirão logo mais se um congressista pode ser processado pelos seus pares por quebra de decoro parlamentar quando ele não era parlamentar.
É uma questão para lá de controvertida, e a argumentação do advogado de Dirceu, José Luiz Oliveira Lima, é tão persuasiva, por exemplo, como a do relator do processo no Conselho, o deputado mineiro Júlio Delgado [que trocou o PPS pelo PSB quando o primeiro rompeu com Lula].
Mas esse, obviamente, não é o núcleo do drama. O seu principal protagonista é um pedaço da história da esquerda brasileira dos últimos 40 anos, encarnado no ex-líder estudantil, ex-militante da resistência armada à ditadura, ex-aluno de guerrilha em Cuba, fundador do PT, deputado eleito da última vez por 500 mil eleitores e que, ao assumir a Casa Civil, fez uma apaixonada homenagem ao ideal socialista.
Isso não dá razão necessariamente a Dirceu quando diz que desejam condená-lo não pelo que fez ou deixou de fazer, mas pelo que representa. Mesmo porque, pode se querer condená-lo por uma coisa ou outra e por uma coisa e outra.
O que Dirceu representa tem, isso sim, uma grandeza trágica. Inocente ou culpado, tirânico ou democrático, centralizador ou trabalhador, ele é um caso à parte no mundo de pigmeus, negocistas, vagais e puxa-sacos que infestam não só uma parte do Poder Legislativo nacional – “Lula não falava nos “300 picaretas” do Congresso? – mas também parte do Executivo, em qualquer época, sem exceção da atual.
Dirceu briga feito fera ferida para não ser removido da política por 10 anos, o que o obrigaria, por sinal, a se desfiliar do PT.
A carta que ele mandou aos seus 512 colegas da Câmara, publicada nos jornais de ontem, é de uma consistência formidável. Assim como as suas declarações, também ontem, antes e depois de ouvir o relator Júlio Delgado ler as 62 páginas de seu parecer pela cassação.
A desgraça é que o parecer não é menos coerente do que as manifestações de Dirceu.
Fama de controlador tem alicerces profundos
Se este jura inocência, o outro aponta o que diz serem — e soam como se fossem – “evidências irrefutáveis” de que o então ministro concebeu e conduziu uma operação miliardária de suborno de deputados para que se integrassem à base aliada do governo e votassem disciplinadamente como o Planalto quisesse.
Não é nova, mas é forte e dificilmente contestável a tese do relator de que o ex-tesoureiro Delúbio Soares – que acabou de dizer que um dia tudo isso será “piada de salão” – fez o que está demonstrado que fez à revelia de Dirceu, cuja fama de controlador tem alicerces profundos.
E o que ele fez foi mais do que pagar com “recursos não contabilizados” dívidas de campanha de companheiros e aliados.
Mesmo que o esquema que entrou para a história com o impreciso termo mensalão não tivesse saído da privilegiada e combativa cabeça de Dirceu, não há como acreditar que ele não soubesse de sua existência – como se as dezenas de deputados que migraram para a base o tivessem feito apenas para estar do lado vencedor e tirar proveito disso, sob a forma de verbas para os seus currais e cargos para os seus cupinchas.
O que põe em cena a questão que não quer calar. O papel, nessa vergonheira toda e sem grandeza nenhuma, do presidente Luiz Inácio “nunca tomei conhecimento” Lula da Silva.
É admissível que, mandando Delúbio a campo ou apenas não o expulsando, na duvidosa hipótese de que este tenha se escalado a si mesmo, o “capitão do time” de Lula deixasse o chefe no escuro a respeito dos meios utilizados para o governo ganhar praticamente todas as votações de seu interesse na Câmara, entre 2003 e 2004.
Já escrevi uma vez e repito: chefes de governo, mesmo quando querem saber das coisas que outros querem esconder deles, têm de suar um bocado; imagine-se então quando eles preferem não saber.
Mas respeite-se a verdade histórica. Primeiro, foi Lula, por decisão própria, que impos ao PT duas condições para ser tetracandidato a presidente: contar com a marquetagem de Duda Mendonça, que cobra os olhos da cara, e com um arco de alianças que pela primeira vez não se limitasse aos partidos de esquerda – o que tampouco não sai de graça, em sentido literal ou figurado.
Segundo, Lula nunca desmentiu a frase que Dirceu dizia e repetia: “Tudo que faço é por ordem do presidente. E nada do que faço é à sua revelia.
O máximo a que Lula chegou em público foi dizer que tinha sido traído. Mas ainda não disse por quem e no quê.
Só que tentou a todo custo induzir à renúncia o companheiro que, mais do que qualquer outro tomado isoladamente, o ajudou a subir a rampa do Planalto.
Será uma amarga ironia se Dirceu for cassado e Lula for reeleito ano que vem.
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