Por uma fração do tempo que levaria para ler todo o copioso noticiário sobre a crise da corrupção, você pode se familiarizar com um debate recém-começado e que promete continuar em cena mesmo depois que o espetáculo da CPI dos Correios tiver esgotado o seu curso – além de ser talvez mais importante no longo prazo.
O debate é sobre o que já vem sendo chamado “Plano Delfim” – uma nova política econômica e de gestão do gasto público, que pode, ou provavelmente não, incluir a adoção do déficit nominal zero como norma constitucional. Seria uma senhora mudança.
É matéria árida. Mas o leitor não especializado pode dispensar a letra miúda da proposta e da controvérsia que desencadeou. Basta que retenha o essencial.
O balanço das contas públicas tem dois fechos. Um se chama resultado primário. O resultado pode ser positivo (superávit), negativo (déficit) ou nem um, nem outro (resultado zero). Primário quer dizer o que entra nos cofres da União (basicamente impostos), menos o que sai (o gasto público). Mas sem contar os juros da dívida pública que precisam ser pagos.
Fazer um superávit primário é separar uma certa soma – atualmente, 4,25% do PIB nacional – para pagar os juros e assim rolar a dívida. O credor não espera receber o que emprestou. Espera receber os juros, que serão tão maiores (ou menores) quanto maior (ou menor) for o risco de calote da dívida.
O outro fecho do balanço se chama resultado nominal. Como no caso anterior, o resultado pode ser positivo (superávit), negativo (déficit) ou nem um, nem outro (resultado zero). Nominal quer dizer incluir na conta do resultado o que se paga de juros.
Essa inclusão faz com que o resultado nominal, ao contrário do resultado primário seja quase sempre negativo. Por isso é sinônimo de déficit público.
Assim como o resultado primário, o déficit público é medido como proporção do PIB, a soma de todas as riquezas produzidas em um país durante determinado período.
Para os economistas ortodoxos, ou liberais, ou monetaristas, quanto menor o déficit público, maior a confiança dos credores e investidores no país. Os membros mais ricos da zona do euro na Europa se comprometeram a não deixar passar de 3% o déficit primário. (Na verdade, deixam, mas essa é outra história.) O déficit público brasileiro no ano passado foi de 2,5% do PIB. Deve aumentar para 3,5% ou pouco mais do que isso este ano.
Para os economistas keynesianos, ou desenvolvimentistas, o tamanho do déficit público pesa menos do que o tamanho do PIB. O importante é o crescimento firme e continuado da economia, estimulado pelo investimento estatal. Isso aumenta o déficit público, mas a própria prosperidade do país garante o sono dos credores. (Em termos, mas também essa é outra história.)
Para forçar a baixa dos juros escandalosos no Brasil, Delfim propôs que o Estado se comprometesse de papel passado, ou seja, na Constituição, a zerar o resultado nominal, ou seja, acabar com o déficit público, até 2009.
Claro: se o governo deixa de ter déficit – o que significa que está pagando os juros da dívida com o dinheiro que entra em caixa, sem se endividar mais ainda para isso – não há nenhuma razão para manter na estratosfera, como se diz, a taxa básica de juros da economia, fixada pelo Banco Central, porque sem déficit não tem perigo de a inflação disparar.
Tesoura e sonho de noiva
Mas como é que se zera o déficit?
Com uma tesoura. Cortando, cortando, cortando, sem dó nem piedade, os gastos do governo para se manter (despesas de custeio). Na base disso está a certeza de que o governo é mau gastador e deve aprender na marra – com o tal “choque de gestão” – a fazer o que já vem fazendo, ou bem mais até, com menos dinheiro.
E com uma faca. Esta para passar a lâmina no que muita gente acha que é um nó que amarra as mãos do administrador público. Esse nó é a obrigação constitucional de gastar com educação e saúde uma parcela fixa da sua receita. Chova ou faça sol.
O sonho de noiva de todo governante é poder gastar como quiser o dinheiro dos impostos. Por isso, o presidente Fernando Henrique conseguiu emplacar uma DRU (Desvinculação de receitas da União) de 20%. Quer dizer: de cada 100 reais cravados para serem gastos no Orçamento federal, 20 reais o Executivo gasta do jeito que achar melhor.
A idéia agora é dobrar esse grau de liberdade. Mas, podendo o governo de turno gastar como preferir 40 reais de cada 100 arrecadados, evapora-se a certeza de que educação e saúde serão atendidas na proporção que os constituintes de 1998 acharam, se não ideal, possível.
Detalhe: os economistas neoliberais acham que o mercado deve poder entrar pesado naquelas duas áreas. O que cabe ao governo é distribuir renda para os mais pobres entre os pobres. Eles não gostam de investimentos maciços nas chamadas políticas sociais universais (educação e saúde). Gostam de investimentos sociais focalizados: programas de renda mínima como o Bolsa-Família.
Desde o começo da semana e especialmente hoje, os jornais trazem artigos favoráveis e contrários ao esquema. O melhor, do primeiro grupo, é do próprio Delfim Netto, terça-feira, no Valor. Certo ou errado, ele escreve claro. A começar do título: “Zerar o déficit público”.
No segundo grupo, os mais interessantes que eu vi estão na Folha de hoje. Um, mais puxado para a economia e ainda assim digerível por um leigo é do professor Paulo Nogueira Batista Jr., da Fundação Getúlio Vargas. Chama-se “Déficit zero?”.
Para ele, a proposta de Delfim é “uma versão radicalizada da política econômica atual”. Vale a pena saber por que ele acha isso. De passagem, ele faz uma observação mordaz: “A Constituição brasileira sempre foi criticada por ser excessivamente detalhista. Ironicamente, muitas das mesmas pessoas que faziam esse tipo de crítica (…) agora aparecem como entusiastas do déficit zero constitucional.”
O outro artigo interessante da turma do não é do colunista Demétrio Magnoli. Chama-se “Lula e o Plano Delfim” e puxa para a política. Segundo ele, a meta do déficit nominal zero serviria para cimentar uma aliança que ele denomina santa entre aspas, querendo dizer profana.
Em torno de um Lula enfraquecido se dariam as mãos o novo PT do próprio Lula e do ministro Antonio Palocci, setores do PSDB e até do PFL, pedaços do PMDB e o partidão que Delfim formaria a partir da costela direita (não tem outra) do PL, PP e PTB.
Pode ser chute? Pode. Mesmo assim é mais útil ler essas coisas do que resumos de depoimentos na CPI. Acredite: você vai precisar tomar pé nessa nova queda-de-braço entre, além de outros, “moderados” e “radicais” do PT. O assunto é maior do que eles.
P.S. Além dos textos citados, recomendo vivamente a leitura do artigo ‘Os riscos de uma proposta perigosa’, do economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, na Folha desta sexta-feira. Embora concentrado basicamente em um desses riscos – deixar o Estado impotente para aquecer uma economia resfriada – o texto é cristalino, bem-informado e dispensa Ph.D em economia para ser devidamente digerido. [9h10 de 8/7]