Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Editor da Folha fala da polêmica em torno de Chávez

O editor de Internacional da Folha de S. Paulo, Marcos Guterman, não concorda com a idéia, corrente em alguns círculos, de que os principais jornais brasileiros tomaram posição fechada, no noticiário, contra o governo do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, embora não chegue a passar atestado de imparcialidade a favor dos jornais. Ele explica a sensação alimentada por fãs de Chávez como uma frustração pelo fato de a imprensa não tomar posição a favor do presidente venezuelano. Faz um paralelo com a frase famosa usada em discurso no Congresso americano pelo presidente George W. Bush, dez dias após os atentados de 11 de setembro de 2001: “Cada nação, em cada região, tem agora uma decisão a tomar: ou está conosco ou está com os terroristas” (*).


Guterman capta um fenômeno que ocorre em muitas situações na relação dos leitores com a imprensa. Não corresponder a expectativas numa direção passa a ser lido como ser parcial na direção oposta. Nem sempre isso é atestado de isenção jornalística, mas o é muitas vezes. Isso não se aplica a veículos que demonizam personagens ou grupos, como acontece, por exemplo, nas reportagens da Veja sobre Chávez. Como norma geral a imprensa não pode se deixar arrastar por expectativas vocalizadas. Os jornalistas devem seguir sua consciência profissional e seu senso ético.


O editor de Internacional da Folha deu na sexta-feira (3/2) a seguinte entrevista ao Observatório da Imprensa:


O senhor acha que existe na mídia mais importante do Brasil posição tomada contra o presidente Hugo Chávez?


Marcos Guterman – Não vou dizer que a imprensa se coloque de maneira imparcial quando se trata do Chávez. No que nos diz respeito, aqui na Folha, tentamos sempre que possível, na maior parte das vezes – embora o jornal já tenha feito vários editoriais contrários ao governo Chávez –, pelo menos no que diz respeito à cobertura diária tentamos colocar todos os lados da questão. Mas como a coisa toda é muito ideologizada, fora dos jornais, cobra-se muito que os jornais tomem uma posição. E em geral quem cobra pede que se seja a favor de Chávez. Então, fica parecendo que os jornais, ao não tomarem uma posição a favor de Chávez, são contra Chávez.


Quem não está em redação começa a enxergar uma série de coisas. Eu sofro muito isso, porque na universidade, que eu freqüento, geralmente as pessoas cobram, são mais engajadas: Você é jornalista, são todos antichavistas. Recebemos muito esse tipo de cobrança. E fica parecendo que, se não tomamos posição, é porque fazemos parte da grande conspiração contra as esquerdas na América Latina, sobretudo contra o Chávez, porque nós somos um braço do poder do neoliberalismo. Esse tipo de bobagem eu escuto muito freqüentemente.


Qual é sua visão a respeito do processo de eleições na América Latina que começou em novembro passado em Honduras e vai até dezembro próximo, quando Chávez tem tudo para ser reeleito na Venezuela?


M.G. – Todo mundo aposta muito no pragmatismo dos vencedores dessas eleições. No caso de Evo Morales, para citar um exemplo recente, publicamos porque essa opinião acaba sendo majoritária. Morales não tem margem para manobrar. A Bolívia é um país pobre, muito dependente dos negócios com o Brasil, com os Estados Unidos. A retórica pode ser incendiária, mas na hora de sentar e administrar ele tem que pagar as contas. A imprensa refletiu muito essa expectativa de que talvez ele tenha sido eleito, como o Lula foi eleito no Brasil, no fundo para administrar a crise social e fazer o país sair do buraco. Eu não sei se isso é positivo ou se é negativo. Acho que é uma visão menos à esquerda do que muita gente gostaria. Tem muita gente que acha que deveríamos publicar coisas dizendo “Agora vai começar a revolução”, porque o que aconteceu é histórico. Ninguém nega a historicidade desse acontecimento. Mas não vamos tão longe assim, porque uma coisa é a teoria e outra é a prática.


E por que o jornal deveria ser de esquerda?


M.G. – É esse o ponto. O leitor de esquerda, além de tudo, acompanha com muito mais crítica, faz mais barulho, e acaba pressionando mais, vamos dizer assim. O resultado disso é que fica parecendo que nós realmente somos de direita. A sensação é essa. Mas eu não acho isso. Acho que a cobertura reflete muito não o que o jornal pensa, mas o que leitor espera dele, nesse aspecto. Que reflita a realidade. Que não fique falando em revolução, porque a revolução não vai acontecer.


Parece que se fez mais esforço agora, nessas coberturas recentes sobre eleições na América do Sul, do que em outras épocas. Não é preciso ir muito longe. No quebra-quebra da Bolívia, que derrubou o presidente Mesa, em meados de 2005, uma repórter da TV Globo não passou da fronteira de Mato Grosso com a Bolívia. Nem entrou em território boliviano. Agora, os quatro jornais mais importantes – até o Jornal do Brasil, caindo aos pedaços – mandaram enviados cobrir a eleição boliviana.


M.G. – As coisas estão mudando. A esquerda está ganhando as eleições, tem um discurso antiamericano forte que pega. Tem uma mudança importante acontecendo. Eu não vou chamar de revolução, exatamente pelas razões que eu já apontei – na hora de pagar as contas tem que ser pragmático –, mas, por outro lado, isso altera muito uma configuração que era francamente favorável aos Estados Unidos e hoje não é mais. Isso, evidentemente, é notícia. Não dá mais para ignorar. Não é mais uma eleição qualquer. É sempre mais um tijolinho nessa construção meio antiamericana aqui no continente.


E também é interessante pela própria postura do governo brasileiro, que adotou uma política externa mais agressiva. O governo Lula tem uma política externa mais voltada para os interesses regionais, mais agressiva, mais presente. No caso da Bolívia… No caso do Peru, agora, os candidatos todos vão se encontrar com o presidente Lula. Existe um interesse mais efetivo do governo brasileiro em conhecer as questões regionais. Isso torna a coisa mais noticiável ainda. Os jornais são obrigados a acompanhar com outro olhar a região. Não era assim. Recentemente passou a ser assim.


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(*) A frase de Bush no original: “Every nation in every region now has a decision to make: Either you are with us or you are with the terrorists”. Ao longo do tempo, começou-se a deformar ligeiramente a frase, que passou a ser citada assim: “Quem não está conosco, está contra nós”. É curioso ler o verbete Qui non est mecus, contra me est, do Dicionário de Provérbios… (o nome completo é interminável) de Raimundo Magalhães Jr.:


“Frase latina de origem bíblica. Significa: Quem não está comigo, está contra mim. Encontra-se nos Evangelhos de São Mateus (capítulo XII, versículo 30) e São Lucas (capítulo XI, versículo 23). Foi parodiada por Benito Mussolini, num discurso de propaganda do fascismo, em 1924, num teatro de Roma, onde disse: ´Quem não está conosco, está contra nós´. Os integralistas copiaram esse dito, em sua campanha anterior ao ano de 1937.”


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Ver também: “Oppenheimer, do Miami Herald: discurso de Chávez é filho da riqueza ilusória”.