Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Editor do Valor contesta crítica à leitura de balanços

O editor do caderno de Empresas do jornal Valor, Nelson Niero, faz reparos a um artigo escrito para o Observatório da Imprensa pelo jornalista Pedro Cadina sob o título “O que os balanços financeiros mostram e as reportagens escondem”. (Ver também entrevista de Pedro Cadina: “Balanços que nunca balançam as empresas”.) Segundo Niero, “Cadina acerta em dizer que, de modo geral, as informações que constam das demonstrações financeiras são subutilizadas pelos jornalistas”, mas “parte para a generalização e, quando cita exemplos para comprovar sua tese, acaba trocando os pés pelas mãos e se embaralhando nos números de balanços”.


Em entrevista dada hoje, Niero confirmou que muitas empresas procuram criar situações que tornem difícil para os jornalistas captar com pleno discernimento a realidade dos números. Deu como exemplo entrevistas coletivas convocadas quinze dias antes da publicação do balanço. É evidente que o jornalista vai sair da entrevista com dados fornecidos pela empresa, sem os números da contabilidade formal, e preocupado com os concorrentes. Será feita imediatamente uma notícia. E quinze dias depois, quando sair o balanço propriamente dito, o assunto terá ficado velho.


Outra situação adversa ao bom entendimento é o das empresas que divulgam dados às nove e meia da noite, quando não há mais tempo para grandes apurações. Isso fica ainda mais complicado às sextas-feiras, porque os dois principais jornais de economia não saem no dia seguinte. Essas notícias sairão apenas em jornais que não são especializados e têm ainda maior dificuldade para diagnosticar o estado das empresas.


Sabe-se ainda que há muita pressão de empresários e de executivos quando a notícia não sai dentro do figurino idealizado pela empresa. Sobretudo quando se trata de grandes anunciantes, de publicidade comum ou mesmo de publicidade legal. Alguns desses se agem como se publicar anúncios os tornasse “donos” dos jornais.


Niero reconhece que falta muito para uma formação sólida dos jornalistas que acompanham os resultados de empresas. “Não basta fazer cursos de vez em quando. É preciso todo um treinamento que demora anos, e que passa pela vivência de situações concretas”, disse.


Pedro Cadina tocou num assunto importante, segundo o jornalista do Valor, mas Niero se sentiu na obrigação de escrever um texto crítico porque o Cadina fez algumas generalizações. Niero enviou para o Observatório da Imprensa exemplos de reportagens sobre empresas feitas recentemente no Valor com o devido cuidado e isenção. Clique para ver os PDFs


Ganho com IPI salva os balanços da Brasken e da Paranapanema








Banco Santos‘, em Cartas de Leitores

 

Eis o texto de Nelson Niero:

“Na sua crítica à cobertura feita pela imprensa da divulgação de balanços das empresas, em artigo e entrevista no site Observatório da Imprensa, o jornalista Pedro Cadina acerta em dizer que, de modo geral, as informações que constam das demonstrações financeiras são subutilizadas pelos jornalistas. O foco, não só no Brasil, mas nos Estados Unidos e Europa, é o resultado, se a empresa deu lucro ou prejuízo, e as razões que levaram a um ou outro.


No entanto, o jornalista parte para a generalização e, quando cita exemplos para comprovar sua tese, acaba trocando os pés pelas mãos e se embaralhando nos números de balanços.


Qual é, de forma simplificada, a tese do Sr. Cadina? Que há uma enorme diferença entre o que os jornais publicam sobre os resultados e o que está nos balanços propriamente ditos. Claro, sempre haverá uma longa distância entre o detalhamento dos balanços e a necessidade de concisão dos jornais. Mas a tese do Sr. Cadina vai além: algumas empresas dizem uma coisa em comunicados à imprensa e publicam outra nos balanços. Ou seja, elas mentem aos jornalistas e, por conseqüência, aos leitores dos jornais, muitos deles acionistas dessas empresas.


É fato que as empresas, principalmente em tempos difíceis, costumam tentar maquiar os dados que divulgam. Se o lucro líquido foi ruim porque o resultado financeiro não ajudou, por que não destacar o lucro operacional antes dos juros da dívida? Não é raro para jornalistas mais curiosos – eles ainda existem – encontrar o lide no pé do comunicado. Faz parte do jogo e não é exclusividade do jornalista de economia ser ´testado´ por suas fontes e seus assessores.


No artigo publicado no Observatório, o Sr. Cadina diz, com conhecimento de causa – ele é dono de uma assessoria de imprensa -, que há um processo de mecanização da imprensa no qual algumas empresas aprenderam a ´produzir o capital simbólico adequado à mídia´. E continua: ´Elas entram então não mais na fase da sugestão de pauta, mas no meio do processo de finalização da notícia. Nos press kits, repletos de números e siglas, encontramos quantidade de informação e linhas suficientes para produzir dezenas de notícias em poucos minutos. Tudo ao alcance de dois cliques no mouse – recorta e cola´.


O Sr. Cadina cita a divulgação de um resultado trimestral da Telemar como exemplo do recorta e cola. ´O caso da Telemar é um ótimo exemplo. De junho de 2003 a junho de 2004, a dívida da operadora com os bancos passou de aproximadamente R$ 11,34 bilhões para R$ 12,2 bilhões. O endividamento saltou de 175,3% para 201,6%, de acordo com a consultoria Austin Ratings. O Valor Econômico e a Gazeta Mercantil, ao contrário, destacavam que havia uma redução do endividamento. <>, dizia o Valor em 14/7/2004. Já a Gazeta, em 30/7/2004: <>.´


A acusação é grave porque vai além da ´inocência´ da imprensa (o jornalista que entrevista o Sr. Cadina no Observatório insinua que o problema está na dependência dos jornais aos anúncios legais das empresas [*]). No caso da Telemar, a empresa teria deliberadamente divulgado um dado errado (a dívida não caiu), o que a colocaria na companhia de uma Enron ou WorldCom, empresas que manipularam os números dos balanços para enganar os investidores.


No entanto, o ´ótimo exemplo´ do Sr. Cadina é equivocado. A Telemar divulgou uma prévia dos resultados na qual ressalta a redução da dívida líquida – empréstimos e financiamentos menos o caixa da empresa. Dívida líquida é o indicador usado por empresas e analistas porque leva em conta a capacidade (caixa) da empresa em pagar seus débitos. Os números da Austin Ratings citados pelo Sr. Cadina não consideram o caixa – são a soma dos empréstimos e financiamentos (mais debêntures) de curto e longo prazo. A dívida bruta subiu, mas a dívida líquida caiu de R$ 9,5 bilhões para R$ 7,3 bilhões no período, porque o caixa da empresa teve um significativo aumento de R$ 1,8 bilhão para R$ 4,8 bilhão.


O Valor divulgou, com o cuidado de lembrar que eram dados preliminares e não auditados, a redução da dívida líquida destacada pela empresa em comunicado, duas semanas antes da publicação do balanço. A reportagem foi ouvir um analista do setor, que se disse surpreso com o percentual de redução da dívida. ´Não esperava [redução] tão acentuada´, afirmava.


O Sr. Cadina também critica a cobertura dos balanços divulgados pela AmBev. Novamente citando dados da Austin Rating, uma empresa de classificação de risco, ele diz que o fabricante de bebidas estava ´em frangalhos´ antes da fusão com a Interbrew. A julgar por sua avaliação, os belgas fizeram um péssimo negócio e acabaram ficando sócios de um ´mico´ que vale hoje no mercado US$ 28 bilhões, cinco vezes mais do que valia no começo de 2003.


Segundo ele, a empresa ´apresentava situação financeira insatisfatória, estrutura de capitais deficiente, nível de solvência razoável e um belo aumento das despesas financeiras´. Uma olhada nos números da AmBev em junho de 2004 mostra que, de fato, os indicadores da chamada estrutura de capital mostram uma piora em relação ao histórico da empresa. Mas daí a concluir que a empresa estava ´em frangalhos´ vai uma longa distância.


O Valor procurou a Austin Rating e soube que não foi feito nenhum estudo sobre a AmBev. O rating E, a que se refere o Sr. Cadina (´insatisfatório, o menor concedido pela Austin´, diz ele), não existe. Mais uma vez, o autor confunde as bolas. Ele olhou um score de crédito, uma análise quantitativa de indicadores de balanço, e confundiu com um rating de classificação de risco, uma análise qualitativa que envolveria radiografia completa da AmBev, com visitas à empresa, conhecimento da estratégia de longo prazo, situação do setor etc. E certamente essa análise não estaria restrita a um trimestre, mas a pelo menos cinco anos, para dar consistência histórica aos números.


E quem poderia ter dado ao Sr. Cadina esses elementos? Outra agência de classificação de risco, a Standard & Poor’s. A empresa acompanha a AmBev (ela foi considerada, no fim de 2004, investment grade, ou seja, passou rapidamente de ´frangalhos´ para investimento não-especulativo, acima do risco-país) e seus relatórios trazem indicadores de diversos anos comparados a de outras empresas do setor no mundo, além de análises detalhadas do perfil financeiro da empresa e da situação do setor de bebidas. Segundo a S&P, o indicador médio de dívida sobre patrimônio da AmBev entre 2001 e 2004 foi de 49%, abaixo do indicador da americana Anheuser-Busch, por exemplo.


Nada disso quer dizer que o jornalista deva se contentar com o que diz a agência de risco, os analistas de banco ou a auditoria externa que assina os balanços (que, no caso da AmBev, também não alertou os investidores para o estado precário das finanças da empresa). No entanto, ele deve pelo menos considerar essas fontes de informação antes de sair decretando a falência de empresas e bancos.


Numa entrevista ao próprio Observatório, o Sr. Cadina diz que conversou com ´alguns editores´ de jornais e revistas de economia. Ele não falou com ninguém do Valor, cujas reportagens – além da Gazeta Mercantil e do Estado de S. Paulo – serviram como base para sua tese. Se tivesse feito, saberia que o Valor tem uma equipe de economistas que capta e analisa criticamente dados de balanços. Seria informado também de que várias reportagens exclusivas do jornal saíram de uma leitura mais apurada dos balanços por seus repórteres e que muitas vezes o jornal saiu com artigos sobre balanços completamente diferentes dos feitas por outras publicações. Saberia, por exemplo, que em junho de 2003 o jornal chamou a atenção para o perigo do ´marketing contábil´ das empresas que tentavam esconder seus prejuízos destacando só os números operacionais. Que em fevereiro de 2004, nove meses antes da intervenção no Banco Santos, o jornal já alertava para o que poderia estar por trás dos números da instituição (o ex-controlador do banco estava prestando atenção e escreveu ao jornal tentando desqualificar as informações). Enfim, estaria ciente de que o jornal está atento para, como coloca em seu artigo, as ´corporações´ que tentam entrar ´no meio do processo de finalização da notícia´.


Do alto da sua cátedra de especialização na ECA/USP, e longe das redações há muitos anos, o Sr. Cadina cometeu o mesmo pecado capital que atribui aos profissionais de imprensa: foi superficial na apuração. E o pior é que ele, ao contrário dos mortais jornalistas, não pode pôr a culpa na pressa.”


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[*] – O entrevistador de Pedro Cadina fui eu mesmo, Mauro Malin. Na entrevista propriamente dita não há nenhuma insinuação. Houve aqui uma pequena confusão do articulista. Na abertura do texto, procurei dar idéia do preço da publicação de um balanço de grande empresa num dos jornais de economia (a Gazeta Mercantil, cujo departamento comercial me forneceu os valores usados no cálculo). Insisto: não se trata de insinuação. Trata-se de dizer claramente quão importantes são esses anúncios para a receita dos jornais. Se isso não influencia nenhum comportamento nesses e em outros jornais, aleluia!


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Que nenhum leitor me imagine capaz de arbitrar a polêmica acima. Faltam-me luzes e calculadoras para tanto. Neste caso, como em tantos outros, o Observatório da Imprensa é uma plataforma para o debate, ou a polêmica. Que todos os interessados se manifestem. Seriam muito bem-vindos à conversa, além de outros jornalistas, empresários, executivos, economistas, contadores e auditores.