Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Enquanto isso, na educação…

Se não fosse, evidentemente, “Brasil se torna país mais seguro para investimentos”, qual seria a manchete do Globo deste Primeiro de Maio?


 


Pode apostar que seria uma variação do título de página inteira que abre a seção nacional do diário:


 


‘Repetência maior, só na África’.


 


O assunto, que a Folha ignorou e o Estado escondeu, é o relatório da Unesco, divulgado na véspera, segundo o qual apenas pouco mais da metade (53,8%) das crianças brasileiras que entram para a escola ficam até o final da oitava série.


 


No Nordeste, não chegam a 40%.


 


As causas imediatas são conhecidas: os desastrosos índices de repetência e evasão. Vinte e sete por cento dos alunos levam bomba já na primeira série.


 


Pior do que isso, daí o título do Globo, ‘só nos países africanos’, informa o representante da Unesco no Brasil, Vincent Defourny, “sem conter o espanto”, conforme o jornal.


 


Os dados são de 2005. Quem sabe as coisas tenham melhorado desde então. Mas o fato é que a situação naquele ano era ainda pior do que a de 1999, quando terminavam o ensino fundamental 61,1% dos matriculados na primeira série.


 


A coincidência entre a promoção do Brasil ao patamar BBB-,onde já foram colocados, por exemplo, a Rússia e a África do Sul, como lugar para investir, e a liberação de mais esse relatório que reprova a educação de base no país, confronta a imprensa com a emaranhada questão da ordem de importância dos acontecimentos.


 


Não há dúvida de que, no caso da hora, a boa notícia econômica prevalece sobre a má notícia social. Não porque uma seja boa e a outra má, mas porque a primeira corrige uma injustiça, consagra uma aspiração legítima do governo brasileiro e confirma que o país está chegando lá graças a diretrizes macroeconômicas que batem rigorosamente com as expectativas do Capital, codinome ‘mercados’. É o presente.


 


Já a segunda notícia projeta para o futuro uma incompatibilidade com os avanços em curso na economia nacional. Além do caráter desumano da exclusão educacional — que será de todas essas crianças que não conseguiram nem ao menos aprender o básico dos básicos? —, os seguidos fracassos do sistema de ensino projetam um obstáculo medonho para a construção de uma sociedade efetivamente desenvolvida e a mais próxima possível da igualdade de oportunidades entre os seus membros.


 


Em geral, a mídia não é lá essas coisas em matéria de balancear presente e futuro, menos ainda de integrar no noticiário uma coisa e outra. À falta de melhor, realisticamente, vale a solução que o Globo dá hoje na primeira página.


 


Imediatamente abaixo do texto sobre o tal grau de investimento, vem a chamada para a matéria com o relatório da Unesco, sob o chapéu “Enquanto isso, na educação…”


 


Caso interesse, o ‘enquanto isso’ é o seguinte:


 



‘Um relatório divulgado ontem pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) mostra que apenas 53,8% das crianças brasileiras matriculadas na escola conseguem terminar a 8ª série (ou 9º ano).

O dado diz respeito a 2005, e indica que a situação piorou em relação a 1999, quando 61,1% dos jovens concluíam o nível fundamental.

O problema é provocado pelos altos índices de repetência e evasão. Na 1ª série do ensino fundamental, informa o relatório, 27,3% das crianças brasileiras foram reprovadas em 2003.

No Nordeste, apenas 38,7% conseguiram terminar o ciclo fundamental.

— A repetência só é maior nos países africanos — disse, sem conter o espanto, o representante da Unesco no Brasil, Vincent Defourny.

Com uma das maiores taxas de repetência do planeta, o Brasil corre o risco de não atingir pelo menos três dos seis objetivos do chamado compromisso Educação para Todos, estabelecido mundialmente em 2000, com metas até 2015. Entre elas, a oferta de ensino de qualidade e a redução pela metade do analfabetismo de jovens e adultos.


 


O Relatório de Monitoramento de Educação para Todos acompanha o que 129 países estão fazendo para atingir os objetivos. O Brasil não tem muito a comemorar: aparece em 76º lugar, atrás de vizinhos como Argentina, Chile, Uruguai, Venezuela, Peru, Equador, Bolívia e Paraguai. A posição intermediária indica que o país poderá não cumprir o que prometeu em 2000. Na ponta de cima, 51 nações já chegaram lá ou estão muito perto disso. Enquanto, na ponta de baixo, 25 países, incluindo a Índia, o Paquistão e nações africanas, dificilmente conseguirão atingir as metas.

Em 2001, quando o ranking foi elaborado pela última vez, o Brasil estava em 72º lugar, e recuou quatro posições, mas entraram mais quatro países no universo da pesquisa. Em 2001, eram avaliados 125. Agora, 129. Como não existe um teste mundial de conhecimentos, o estudo avalia a qualidade do ensino por meio de um indicador comparável internacionalmente: o número de estudantes que chegam à 5ª série do ensino fundamental (6º ano), ou seja, que ‘sobrevivem’ à escola.

No Brasil, essa taxa era de 80% em 2005. O indicador piorou em relação a 2004 (84%). Para a Unesco, no entanto, essa variação é desprezível, pois pode estar dentro da margem de erro estatística. O mesmo vale para o Índice de Desenvolvimento de Educação para Todos (IDE), que serve de referência para o ranking e caiu de 0,905 para 0,901, entre 2004 e 2005. A escala vai até 1.

A consultora da Unesco Angela Rabelo Barreto, uma das autoras do relatório, disse que o problema maior está na estagnação do país em torno desse índice: tanto em 2001 quanto em 2002, a taxa brasileira já ficara em 79,9%. Ou seja, a escola pública ensina pouco e ainda expulsa parte dos alunos ao longo dos anos, seja por meio da repetência ou da evasão.


 

A taxa de repetência brasileira na 1ª série, assim como nas demais, supera não só a dos vizinhos sul-americanos como a dos países em desenvolvimento mais populosos, o grupo do chamado E-9, que reúne nações com características semelhantes às do Brasil: China, Índia, Nigéria, Indonésia, Paquistão, Egito e Bangladesh.

— O Brasil comete dois equívocos simultaneamente: criou uma indústria da repetência e uma indústria da aprovação automática — admitiu o ministro da Educação, Fernando Haddad, fazendo referência também a outro contingente de alunos que até consegue completar o ensino fundamental, mas pouco ou nada aprende.

O relatório diz que o Brasil terá dificuldades para garantir a paridade entre gêneros. Diferentemente do que ocorre no mundo árabe ou na Ásia, onde as mulheres têm menos acesso à educação, no Brasil são os homens que abandonam a escola, fazendo com que elas sejam maioria. Outro objetivo é a redução do analfabetismo na população de 15 ou mais anos: a meta prevê uma queda de 50% em relação ao índice de 1990, o que significaria uma taxa de 6,8%. Em 2006, 10,5% não sabiam ler e escrever.

A meta mais próxima de ser atingida é da universalização do ensino primário. Defourny observou, porém, que o acesso à escola é só um meio de dar transmitir conhecimento.

Ou seja, é preciso que os alunos ingressem, permaneçam, mas, acima de tudo, aprendam.

O estudo enfatiza que a superação das desigualdades regionais, assim como socioeconômicas e raciais, é outro grande desafio: — A dificuldade de incorporar os segmentos da população mais excluída sempre foi o problema da educação brasileira — disse o ex-representante da Unesco no Brasil Jorge Werthein.

A consultora Angela ressalvou, porém, que o relatório monitora os índices de 1990 a 2005. Deixa de fora, portanto, os esforços do governo federal nos últimos anos.

Haddad procurou minimizar o estudo, enfatizando que se tratam de dados produzidos pelo IBGE e já divulgados.

Ele disse que os problemas identificados serviram de base para o Plano de Desenvolvimento da Educação, lançado em abril de 2007 e que recebeu a adesão de 5.400 prefeitos e de todos os 27 governadores, com metas até 2022. O ministro defendeu maiores investimentos no ensino. Segundo ele, o país precisa aplicar pelo menos 6% do PIB. Hoje são 3,9%.

— Hoje se vê empresários falando sobre educação. Até eles perceberam que não é só o lucro das empresas que conta. Há muito o que fazer ainda.

Há uma longa avenida pela frente. Mas era uma avenida esburacada. Hoje acho que é pavimentada e vai permitir acelerar o passo — disse Haddad.’