Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Entre o local, o nacional e o global

Um dos mais combativos – e progressistas – políticos americanos do século passado, o deputado e líder democrata Thomas (Tip) O´Neill [1912-1994], fez um dia uma frase que, repetida e adaptada ao que se quisesse, correu mundo: ‘Toda política é local.’


Segundo um dos seus mais próximos colaboradores, o estudioso de mídia Peter Osnos, o ‘local’ em que ele pensava tinha menos a ver com a geografia do que com o interesse das pessoas. Toda política seria local na medida em que todo interesse, em última análise, seria individual.


Ou, de forma mais direta, o que mais importa é o que mais me importa.


Essa questão está eternamente presente no cotidiano de uma redação. No caso de um jornal, na hora de hierarquizar as notícias do dia, os editores tomam decisões, menos ou mais conscientemente, que têm tudo a ver com a máxima de O´Neill.


Qual a matéria que deve dar a manchete da edição seguinte? Uma tragédia do outro lado do mundo, ou um acontecimento ocorrido na cidade, no Estado ou no país do jornal que, pelo seu potencial de afetar em cheio a vida do leitor, deve importar-lhe mais do que qualque outro?


No sábado (5/5), os três principais diários brasileiros, deram, cada um, respostas diferentes a indagações como essas, apresentadas esquematicamente apenas a título de ilustração do assunto.


O Estado de S.Paulo destacou o fato global por excelência da sexta-feira – o relatório do painel da ONU que estuda as consequências do efeito estufa, segundo o qual investimentos anuais da ordem de não mais de 0,2% do PIB mundial até 2030 bastariam para impedir os piores efeitos da mudança climática induzida pelo homem. Ou, na manchete do jornal: ‘Evitar caos do aquecimento global custa pouco, diz ONU’.


A propósito, o Estado oferece um excelente pacote de 4 páginas, na base do ‘tudo que você precisa saber sobre a crise do clima’. É possível que a publicação desse caderno especial tenha ditado a escolha do assunto número um da primeira página.


O Globo destacou o fato local por excelência da mesma sexta-feira – a ordem dos traficantes presos no complexo penitenciário de Bangu para os seus ‘soldados’ pararem de matar civis e PMs na favela da Vila Cruzeiro, no bairro da Penha. Três dias de tiroteios deixaram três mortos e doze feridos. ‘Ordem de Bangu pára tiroteio de 3 dias no Rio’, proclamou o jornal, remetendo ao pé da página o tituleto ‘É possível e barato controlar o clima’, sobre o relatório da ONU.


Mas só a Folha apresentou no lugar adequado o fato mais importante da véspera no Brasil, com a manchete, de fora a fora da página, ‘Lula quebra patente e ameaça laboratórios’, e o subtítulo ‘Medida para droga anti-Aids pode se repetir com outros remédios, diz presidente; fabricantes vêem retrocesso’.


Talvez o jornal tenha superestimado a ‘ameaça’. Embora Lula tenha dito o que disse, é improvável que siga ao pé da letra as próprias palavras: ‘Vale para este remédio, mas para tantos outros quanto for necessário’.


O próprio ministro da Saúde, José Gomes Temporão, diz que não há outros medicamentos sob ameaça de licenciamento compulsório [o nome técnico para quebra de patente]. Melhor teria feito o tituleiro se, em vez de acenar com mais quebras, contrapusesse à previsível crítica dos fabricantes os elogios das ONGs e dos políticos.


De qualquer forma, salvo melhor juízo, antes a manchete imperfeita para uma notícia nacional de grosso calibre – pelo seu ineditismo no Brasil e pelas suas repercussões no exterior – do que a ordem de entrada em cena definida pelo Estado e o Globo.


O jornal paulista ainda se salvou pelo gongo ao dar à chamada de 20 linhas sobre o ato do presidente um título em duas colunas, ‘Brasil quebra patente e causa reação nos EUA’, seguido do sub ‘Iniciativa atinge remédio contra a aids’ – com ‘a’ minúsculo, acertadamente.


Já o Globo, amarrado ao critério discutível que reserva o topo da página ao que o jornal tem a oferecer em outras seções e cadernos, teve que dar a história da patente numa chamada de meras 13 linhas, sob o título pele-e-ossos em uma coluna ‘Brasil quebra patente de anti-Aids’. Não coube nem a palavra droga, muito menos remédio.


Dentro, a Folha também deu mais ao leitor por seu dinheiro. Três páginas de patente quebrada, contra duas Estado e menos de uma e meia do Globo, além de um artigo de Clóvis Rossi, despachado de Paris, e outro de Fernando Rodrigues, de Brasília.


Coroando o esforço, como diz o lugar-comum, foi o único dos três jornalões a sair já no sábado com um editorial sobre o caso. A publicação do editorial é importante por dois motivos. 


Primeiro, é mais um exemplo da conhecida agilidade da Folha nessas horas. Quantos compradores do Estado e do Globo não terão se perguntado, depois de ler o noticiário, qual a opinião deles sobre o acontecimento. Vão ter de esperar.


Segundo, porque o editorial da Folha ‘Patente quebrada’ é um exemplo de ponderação no exame de um fato polêmico. Um belo ponto de partida para uma discussão mais ambiciosa. O texto defende a quebra, mas alerta para os seus eventuais custos. Diz assim:


Não há dúvida de que a saúde pública deve prevalecer sobre interesses comerciais. Assim, é em princípio correta a decisão do governo brasileiro de quebrar a patente do anti-retroviral efavirenz (Stocrin), comercializado pelo laboratório Merck Sharp&Dohme. No Brasil, a droga é utilizada por 75 mil pacientes de Aids (38% do total) atendidos pela rede pública.


O governo optou pelo licenciamento compulsório – nome técnico da quebra de patente-  por julgar que o desconto oferecido pela Merck era insuficiente. Cada comprimido de 600 mg de efavirenz saía por US$ 1,59 para o Ministério da Saúde. O laboratório dispôs-se a baixar mais 30%. O governo considerou pouco. Na Tailândia, a mesma Merck comercializa o mesmo efavirenz por US$ 0,65 a unidade. O Brasil diz que vai agora comprar o medicamento de fabricantes indianos de genéricos por US$ 0,45 o comprimido -uma economia anual de US$ 30 milhões.


Outro argumento que parece ter pesado é o de que as margens de negociação com os laboratórios vinham se estreitando. O Brasil já ameaçara quebrar patentes de drogas anti-Aids em 2001 (nelfinavir, da Roche) e 2003 (Kaletra, da Abbott). Como nunca concretizara tal gesto, a indústria farmacêutica estava se mostrando cada vez mais reticente em baixar seus preços.


A licença compulsória é referendada pela legislação brasileira no caso de emergências sanitárias ou de interesse público (art. 71 da lei nº 9.279/96). Tal disposição encontra amparo em acordos internacionais, como o Trips, que regula o direito de propriedade intelectual.
Mesmo os EUA, país que mais se queixa de licenciamentos compulsórios, recentemente cogitaram de quebrar a patente do antibiótico ciprofloxacina, manufaturada pela Bayer, quando estiveram às voltas com ataques de antraz, após o 11 de Setembro.


Só que o fato de o Brasil ter o direito de quebrar a patente e algumas boas razões para fazê-lo não significa automaticamente que a decisão seja sem custos. No curto prazo, poderemos sofrer retaliações legítimas de laboratórios. A exemplo do que já fizeram com outras nações que emitiram licenças compulsórias, eles poderão deixar de lançar por aqui seus novos produtos, privando portadores das mais variadas moléstias de drogas potencialmente úteis.


Não se pode esquecer que a indústria farmacêutica – apesar de todos os recentes casos pouco abonadores em que se meteu- responde por parte da pesquisa médica e pelo principal do desenvolvimento de novos princípios ativos. Não interessa a ninguém quebrá-la, o que fatalmente ocorreria se todo medicamento útil se tornasse ‘patrimônio da humanidade’, como quer o presidente Lula.


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