Funciona assim:
O jornal publica uma entrevista sem pé nem cabeça com um um cidadão credenciado por um currículo que confere autoridade ao que tenha a declarar no seu campo de trabalho.
O cidadão, que no caso, aliás, merece mais respeito do que as respostas que deu ao repórter, afirma uma enormidade sem fundamento algum nos fatos. O jornal a destaca no título, ainda piorada, porque sem as ressalvas com que o entrevistado, que tem um nome a zelar, tratou de cercá-la.
Publicada a cascata, como se diz na gíria da profissão, o jornal manda a campo os seus repórteres para ecoá-la, tentando transformar um factóide num fato. E pronto: lá está o chute nas núvens alçado à condição de golaço, coisa séria a que o leitor deve ficar atento. Afinal, deu no jornal – e não num jornal qualquer.
E assim, de repente, não mais que de repente, da calma se fez o vento. E da fumaça, fogo.
O jornal em questão é O Estado de S.Paulo. O entrevistado, o cientista político (USP e Unicamp) Leôncio Martins Rodrigues. O assunto, apresentado na primeira pergunta do repórter Gabriel Manzano Filho, é ‘o impacto político do anúncio do Plano de Aceleração do Crescimento’.
Ele diz o que acha e conclui que ‘é difícil falaramos em um governo novo’. Até aí, tudo bem – o leitor que julgue se o professor sabe o que diz. Mas, na resposta à pergunta seguinte, ele afirma acreditar que o PAC está ‘no âmago de uma estratégia futura’. Naturalmente, o repórter pergunta que estratégia é essa. [O certo seria ele usar o verbo no condicional – seria – mas isso é detalhe.]
E aí vem: ‘A que [sic], no decorrer do governo, crie e mantenha condições para que o presidente, no devido tempo, comece a trabalhar por um terceiro mandato.’
‘Então’, volta o repórter, ‘o PAC é uma estratégia destinada a garantir o continuísmo?’ [Ele podia ter perguntado se o entrevistado dispunha de alguma informação a respeito, algum fato objetivo que amparasse a sua opinião, mas deixa pra lá.]
Segue-se uma longa resposta que só engata com a pergunta na primeira frase: ‘Não digo isso, porque um projeto assim depende de uma quantidade enorme de viariáveis e é impossível prever cenários para daqui três ou quatro anos.‘
O lógico seria o repórter devolver: ‘Se o senhor não diz que o PAC é uma estratégia de continuísmo, por que disse que está no âmago de uma estratégia que seria a de o presidente começar a trabalhar por um terceiro mandato?’
Mas ele preferiu dar corda às especulações do professor, a ponto de, a certa altura, este se precaver: ‘Volto a dizer: não estou prevendo que isso acontecerá. Estou advertindo para que os analistas e os eleitores pensem nisso com seriedade.’
Seguem-se abobrinhas de parte a parte. Publicada, com uma enorme foto do entrevistado, a matéria ocupa 3/4 de uma página que dá ibope, porque ao lado está a coluna de Dora Kramer. Título pá-pum: ‘Estratégia é criar condições para um terceiro mandato’. Sub-título: ‘Analista acha que Lula, dependendo do cenário político, pode tentar mudar a Constituição para ganhar mais 4 anos’.
O ‘pode’ e o ‘dependendo’ empalidecem perto das palavras ‘estratégia’, ‘terceiro mandato’ e ‘analista’.
Se ficasse por isso mesmo, já seria muito. Mas qual o quê! Hoje, o mesmo Estadão ocupa quase todo o espaço útil de uma página com ‘repercussões’. A primeira tem um título e um sub primorosos: ‘Tese de mais 4 anos para Lula inquieta a oposição’ e ‘Mas avaliação é de que PAC é muito tímido para embalar esse projeto’.
Deu para perceber? A oposição está ‘inquieta’, mas ganha espaço para bater no PAC, que não a inquieta.
A segunda matéria volta aos especialistas, com título e sub do gênero sim, não, talvez, todavia, emboramente, contudo – mais conhecido como nó em pingo de água: ‘Para especialistas, muitos fatores pesarão até 2010’ e ‘Pacote seria aposta estratégica, dizem eles, mas depende de variáveis difíceis, como mudar Constituição’.
Dos quatro cientistas políticos ouvidos – pela ordem de entrada em cena, Lourdes Sola, Francisco Weffort, Fábio Wanderley Reis e Celso Roma – só ela concorda que o PAC ‘é uma aposta estratégica de Lula’. Diz: ‘Movimentos [por um terceiro mandato] podem ser feitos não só por Lula, mas também com a construção de apoios através de mobilização de movimentos sociais.’
Weffort, ex-petista, ex-ministro de Fernando Henrique, que não é bobo nem nada, se precavém. Segundo o jornal, destaca que o próprio autor da idéia impõe tantas condicionantes que fica difícil examinar a questão. E, entre aspas: ‘Acho que na conclusão sobre as chances de Lula tentar o terceiro mandato seguido há um excesso de antecipação no tempo.’
Fábio Wanderley Reis, da UFMG, argumenta que qualquer político se dispõe a montar em cavalo que passa arriado, prontinho, sem custos nem riscos. Mas, no que interessa, fulmina: as chances ‘são muito pequenas, mesmo que se leve em conta a existência, no PT, de um grupo que sempre buscou um poder hegemônico’.
Por fim, Celso Roma, da USP, acha que o desejo real do governo, com o PAC, é viabilizar um candidato daqui a quatro anos – ‘não necessariamente o presidente’. E, ‘se esse nome será o próprio Lula, ainda não dá para dizer’.
Agora, é de perguntar: justifica-se jornalisticamente todo esse barulho por nada?
Não, não se justifica. Mas tem um ‘pequeno detalhe’:
O argumento do ex-presidente Fernando Henrique para a oposição não dar mole a Lula II é o de que ela precisa evitar o Lula III. Ele acha, ou diz, que o presidente tem, ou pode ter, a intenção de fomentar uma mudança constitucional acabando com a reeleição no país. Se a emenda passa, zera-se o jogo. E Lula sai candidato sob regras novinhas em folha.
Lula, pode, ou não, sonhar com isso. Mas, se sonha, parece que não repartiu o sonho com ninguém. Se repartiu, ninguém passou a inconfidência adiante, a ponto de ela chegar à soleira da mídia.
Ou seja, a base factual da hipótese é tão sólida como o túnel da estação Pinheiros do metrô de São Paulo.
Se assim é, vai ver o ex-presidente julga os outros por si mesmo. Eleito para um mandato único de quatro anos, ele patrocinou a aberrante emenda que instituiu a reeleição já para o período seguinte – e não, como seria justo e democrático, para vigorar a partir do mandato seguinte ao seu.
Leôncio Martins Rodrigues é um intelectual íntegro e de grande talento, julgue-se como se queira a sua trajetória ideológica. É indispensável que isso fique claro, para que não ocorra a alguém que ele está fazendo o jogo de Fernando Henrique, seu ex-colega, de quem é amigo próximo.
Mas sobre o que fez o Estadão acolher o ectoplasma que acolheu, com todo esse destaque, ontem e hoje, só se pode especular.
Em tempo: escrevi este texto antes de ler Dora Kramer hoje. Título: ‘É difícil, mas não é impossível’. Destaque: ‘Brecha para o terceiro mandato de Lula poderia surgir na proposta do fim da reeleição.’
Não tem perigo de melhorar.
P.S. Ainda o Estadão [Acrescentado às 16h30 de 24/1]
A matéria do Estado de hoje que trata do relatório da ONU sobre o aquecimento global, a ser divulgado em Paris no próximo dia 2, cita, a propósito do vazamento de versões do texto ainda sujeitas a mudança, um dos participantes do trabalho, Jerry Mahlmann, do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos Estados Unidos.
Segundo o jornal, ele teria dito que os responsáveis pelos vazamentos são pessoas que buscam elementos para aumentar o medo e a apreensão da população.
Meia verdade.
O que ele disse – e o New York Times publicou sábado passado – foi que essas pessoas escolhem para vazar as passagens que lhes interessam por ser ou as mais assustadoras ou as mais tranquilizadoras do relatório.
A verdade toda faz toda a diferença.
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