O presidente Lula continua a preferir entrevistas exclusivas ou parciais a entrevistas coletivas. Uma pequena parte da surpresa reservada aos telespectadores no primeiro dia de 2006 pelo Fantástico, da Rede Globo, vazou hoje nos jornais. É difícil um caminhão de externa da Globo ficar invisível na frente do Palácio do Planalto. Alguns repórteres foram conferir e viram pela porta entreaberta do caminhão três dos 37 minutos da entrevista.
O presidente voltou à tese da “facada nas costas”. O senador Heráclito Fortes, que ontem se notabilizou por ter colocado no horário nobre da televisão o pleito por uma escada Magirus em Teresina, reclamou o nome do esfaqueador. E do dono da faca.
Lula também disse que a mídia não divulga as boas coisas de seu governo. De fato. Mas o próprio governo não divulga. O PT no poder conseguiu anular algumas virtudes básicas do PT na oposição. Entre elas sua capacidade de fazer, como se dizia no jargão da esquerda, agitprop: “agitação e propaganda”.
Na análise política de 2005 ficou faltando o exame da política de alianças do PT. Que foi um desastre por exclusão, até 2002, e um desastre por inclusão, de lá até agora.
A função das alianças
Um leitor comenta:
‘Ninguém analisou este lado da questão até agora: com quem o PT deveria se coligar para governar? Os aliados naturais, PPS, PSB, PCdoB, PV e outros não dariam maioria, o PMDB é um saco de gatos sem a menor consistência, PTB, PP, PL são meros aproveitadores do Estado… Não há saída para quem chegar ao poder, infelizmente!’
Então, vamos dar mais uma volta no parafuso.
Se o preço de chegar ao poder é perder a própria identidade, tudo tem que ser repensado. Mas não é, não. O governo aprovou sua principal reforma, a da Previdência, em 2003, com a participação decisiva do PSDB. Será que não dá para tirar, de dentro do saco de gatos do PMDB (e do PSDB, e do PFL), alguns aliados, como poderiam ser um Pedro Simon, um Germano Rigotto, um Jarbas Vasconcellos?
A equação montada pelo presidente Lula com o então ministro Dirceu estava errada. Desde José Alencar/Waldemar Costa Neto, ou Duda Mendonça, ou toda a turma que foi para o espaço com as denúncias de Roberto Jefferson, outro aliado de péssimos antecedentes. PPS, PSB, PC do B e PV não decidem votações, mas não atrapalharam o PT.
A equação estava errada porque o PT perdeu o rumo. Para ganhar a eleição, foi obrigado a abrir mão de propostas ou delirantes, ou demagógicas, ou ambíguas. Quem não sabe exatamente que política quer fazer não pode saber quais são as alianças adequadas.
Alice, perdida no País das Maravilhas, pergunta ao gato que caminho deve tomar. O gato lhe pergunta para onde quer ir. Ela diz que não sabe. Só sabe que quer sair dali. Então o gato retruca: Para quem não sabe aonde quer chegar, qualquer caminho é bom.
Ou, dito pelo avesso, como os romanos: nenhum caminho é bom para quem não sabe aonde quer chegar.
Mas num ponto essencial é preciso fazer justiça ao presidente Lula: o compromisso básico que assumiu com o povo brasileiro em meados de 2002, o compromisso de não fazer aventuras na economia, está mantido até hoje. E olha que não tem pouca gente buzinando para ele sair da trilha.
O drama é que uma parte do PT, e uma parte visceralmente ligada a Lula, perdeu de vista seus compromissos políticos e ideológicos e foi seduzida pelo poder. Ou não foi?
Incapacidade gerencial
Outro fator que precisa ser levado em conta é a baixa capacidade gerencial do PT, com as exceções de praxe. O dirigente petista típico não é bom de serviço (público, entenda-se).
A máquina federal tem não só ilhas de excelência como gente séria e dedicada em todas as áreas, numas mais (Banco Central, Fazenda, Forças Armadas, Itamaraty, Embrapa, Petrobrás, Banco do Brasil, com todas as ressalvas que cabem em cada caso, sem pretensão de esgotar a lista), noutras menos (Receita Federal, Polícia Federal, idem). Tem uma linha de compromisso com certas políticas públicas na qual se percebe uma continuidade de décadas.
Mas isso não cabe no arcabouço teórico que guiou o PT até Brasília, no qual o Estado, submetido ao neoliberalismo do Consenso de Washington, aliado ao capital financeiro, aos latifundiários, às oligarquias, às multinacionais, só pode ser um instrumento de opressão econômica e alienação política.
O PT chegou ao Planalto guiado por dois instintos ruins. Primeiro, considerar que ‘está tudo errado’. É o discurso do PC do B: ‘Vamos criar um novo país’. Segundo, e pior ainda, com os sentidos excitados pelo cheiro do banquete. Magro banquete, por sinal, a não ser quando se pega carona na mesa dos ricos (isso acontece com alguma freqüência). Mas melhor do que o bandejão prévio. (Chegou guiado também por bons instintos, claro, mas a argumentação aqui é em torno do que não funcionou.)
Então, faz pouco e atrapalha quem sabe fazer. Começa que o PT é muito dividido e precisa contemplar muitas concepções e interesses políticos distintos.
Muitas das dificuldades do presidente Lula decorrem disso. Que é o chefe, sem sombra de dúvida, para o bem e para o mal, e provou isso. Lembram-se das caricaturas que faziam do método de trabalho no Planalto, onde haveria um ‘politburo’ tutelando o presidente?
Mas essa é uma análise impressionista, esquemática. Faltam reportagens e estudos que permitam qualificar melhor o que foi, até aqui, a passagem do PT pela máquina federal. Comparar ministérios dirigidos por petistas com ministérios dirigidos por outras forças, muitas das quais não são melhores, mas conseguiram disfaçar melhor seus próprios desatinos, incompetência ou corrupção.
Necessariamente, o exame deverá ser específico, pois os casos são muito diferentes. Dá trabalho, mas não há outra maneira de se entender direito o que ocorreu.