O Paraguai é um vizinho-problema para o Brasil, conforme comprova o histórico policial nas relações entre os dois países – e não pairam dúvidas, de acordo com os registros constantes na imprensa brasileira.
Na maioria dos casos, tão recorrentes que já não impressionam a opinião pública nem leva o governo federal a adotar medidas concretas, os transtornos nascem nos buracos da vigilância na fronteira, tanto no rio Paraguai quanto na fronteira seca com o Mato Grosso do Sul. No ponto mais movimentado – Foz do Iguaçu (PR)/Ciudad del Este – granjeia o contrabando com intensidade tamanha que os muambeiros fecham a ponte da Amizade quando a Polícia Federal decide fiscalizar; nos pontos mais ermos – Porto Murtinho (MS)/ Pindoty Porá (Corpus Christi), por exemplo – vem o tema da febre aftosa e, de quebra, a constatação que a desinformação da imprensa brasileira como um todo colabora com o preconceito contra o vizinho..
As origens da imagem de republiqueta de quinta categoria que o Paraguai desfruta no país têm a ver – e muito – com as interferências brasileiras no vizinho. Desde a Guerra do Paraguai, quando o Brasil, Argentina e Uruguai, atendendo a interesses britânicos, promoveram a maior matança que se tem notícia na América Latina depois da independência desses países, o Paraguai tornou-se um estorno para seus vizinhos mais poderosos. Em seis anos de Guerra, entre 1864 e 1870, 100 mil paraguaios morreram, segundo algumas das pobres estatísticas ao alcance. O que se sabe é que a população masculina foi quase totalmente dizimada, conforme mostram alguns relatos sobre a participação de meninos de dez anos nas últimas baralhas.
O escritor e jornalista Eduardo Galeano, em ‘Veias Abertas da América Latina’, classificou o que os paraguaios chamam de ‘Guerra Grande’ como ‘genocídio’. Desde então, o sentimento de culpa permeia as ações dos governos brasileiros com relação ao vizinho. Foi-se embora o Império do Brasil em 1889, veio a República – e essa característica se renova, seja no abrigo ao ditador Alfredo Stroessner ou de ex-presidentes derrubados por golpes de estado, ou pela recente decisão do governo Lula que submeteu os documentos do período da guerra ao segredo eterno.
A essa mesma postura paternalista – o vizinho está sempre com o chapéu na mão – que também sustenta a vista grossa do Brasil para a ampla teia de crimes que se desenha na fronteira. Entra governo sai governo, mudam as moscas, mas a porcaria continua a mesma. O Brasil não age decisivamente contra o crime que prejudica seus cidadãos como se a prática da ilegalidade fosse um dos poucos recursos que restou ao vizinho aniquilado pela guerra. A magnitude das ilegalidades que se comete é o que motiva a movimentação dos EUA para a construção de sua segunda base militar na América do Sul (a outra é no Equador). Os norte-americanos desconfiam – e divulgam constantemente – que a tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai é uma ameaça para sua segurança, por causa do trânsito de armas de todos os tipos e calibres.
Quando brotou o foco da febre aftosa em Porto Murtinho, a prática de culpar o Paraguai pelo trabalho que o Brasil deixou de fazer, manteve-se. Renovando discursos anteriores, o governador do Mato Grosso do Sul, José Orcirio dos Santos, o Zeca do PT, foi o primeiro a autorizar que o Iagro, a Agência Estadual de Defesa Animal e Vegetal, divulgasse que o gado contaminado viera do vizinho. Não era de seu governo, portanto, a responsabilidade pelos prejuízos que ainda estão sendo somados e ampliados. Até hoje, 22 de outubro, 41 países declararam veto à carne brasileira. Também hoje, os jornais trazem a descoberta de novos focos do vírus no Paraná, para onde reses contaminadas teriam sido levadas para participação em feiras agropecuárias.
Quando o governador Zeca disse que o assunto não era com ele, apesar de estar no comando do estado que é segundo maior exportador de carne do Brasil, (US$ 227 milhões entre janeiro e agosto deste ano), passou automaticamente o mico para Brasília. Assim que a bomba estourou na Esplanada dos Ministérios, o Ministério da Agricultura acrescentou que além do Paraguai, a culpa também cabia ao superávit fiscal e o ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Diante do desmentido da Fazenda, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, recuou e corrigiu a primeira versão. Sua pasta recebera realmente menos recursos do que o previsto no orçamento para proteger os rebanhos brasileiros, mas, como apontou a reportagem do O Estado de S.Paulo de sábado passado, 15/10, com a reprodução dos números do Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira), a maior parte dos recursos foi gasta na compra de autos utilitários e viagens.
O mico pousou nos ombros do presidente Lula – que tratou rapidamente de passá-lo também aos produtores – e teria ainda outros desdobramentos. Na segunda-feira, pela manhã, Lula disse em seu programa de rádio, ‘Café com o Presidente’, que a aftosa fora debelada; à tarde, o Ministério da Agricultura anunciou a descoberta de mais três focos da doença. Detalhe: o presidente foi desmoralizado quando já se encontrava na Rússia, que comprou US$ 700 milhões em carnes brasileiras no ano passado, com a perspectiva de fechar 2004 com US$ 1 bilhão.
Assim, durante toda esta semana, o noticiário – com a honrosa exceção do O Estado de S.Paulo, – concentrou-se na passagem do mico entre as autoridades, considerando como verdade estabelecida que o problema nascera no Paraguai. Apesar de não contestar a versão da culpa paraguaia, O Estado diferenciou-se dos demais. Foi o que mais investiu no envio de repórteres para a região infectada, deixando, com isso, de limitar sua cobertura ao passeio do mico entre as várias instâncias de governo.
Durante os dias em que o mico pulou nos ombros das autoridades do Brasil, jornais e agências de notícias dos países vizinhos – entre os quais Argentina, Uruguai e o próprio Paraguai disputam o mercado exportador de carne com o nosso país– respaldavam a versão que não deixava dúvidas sobre a origem da aftosa, 100% brasileira.
No dia 12 de outubro, por exemplo, o jornal paraguaio La Nación trouxe como principal reportagem do dia que o governo de Assunção deslocara sete patrulhas formadas por soldados do Exército e técnicos de seu serviço nacional de saúde animal para percorrer os 550 quilômetros de fronteira com o Brasil ‘para evitar a passagem de gado brasileiro para o nosso país’.
‘Nosso objetivo é preservar o status sanitário de país livre de aftosa com vacinação’, reforçou, na ocasião, o ministro da Agricultura do Paraguai, Gustavo Ruiz Díaz. No Uruguai, a vigilância aplicou o recurso radical do ‘rifle sanitário’ – o tiro-ao-alvo nos rebanhos vindos do Brasil. No dia 14, o governo paraguaio anunciou a mesma medida.
No dia 17, a agência de notícias italiana Ansa trouxe a denúncia de que técnicos veterinários do Brasil, antes de o governo confirmar os focos da doença no Mato Grosso do Sul, ‘entraram clandestinamente no Paraguai para procurar evidências da aftosa ma zona de fronteira’. A investida foi considerada de ‘má-fé’ pelo governo do vizinho. Dois dias depois, o jornal ABC Color, do Paraguai, trouxe o presidente do Iagro sul-matogrossense, João Cavallero, negando a invasão de território.
Agora, quando a febre viajou do Mato Grosso do Sul para o Paraná, a tese da culpa paraguaia esvazia-se. A incompetência é 100% nacional. Mas a imprensa brasileira passou a maior parte da crise confiando na justificativa de que a culpa era paraguaia