Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Florestan jornalista’

O título entre aspas desta nota é o da orelha do livro Que Tipo de República? Trata-se da reedição de uma coletânea de textos publicados na imprensa, basicamente na Folha, pelo sociólogo Florestan Fernandes, falecido em 1995. Faz parte das Obras Reunidas de Florestan, que vêm sendo publicadas pela Editora Globo. O autor da orelha é o cientista político Gildo Marçal Brandão, da Universidade de São Paulo.


Que Tipo de República? reúne artigos publicados em período crucial da vida política brasileira, quando a ditadura militar batia em retirada e não se sabia extensão e profundidade das mudanças possíveis. Quem está acostumado com a prosa científica de Florestan não pode deixar de imaginar o quanto lhe deve ter custado aclarar um turbilhão de idéias em três ou quatro laudas de modo a se comunicar “com o maior número possível de inconformistas e de dissidentes”. O resultado é admirável. A exposição é não só legível, mas vale um curso abreviado de como olhar não a superfície das coisas, mas a sua “essência íntima”.


Evidentemente, as asperezas do estilo não são eliminadas, porque elas são da realidade e do modo plebeu de percebê-la. Nenhum comentário é episódico, a circunstância é quase dissolvida, seu exame sempre crispado pela permanente atenção às armadilhas da revolução burguesa na qual a “nossa transformação capitalista fechou a sociedade civil aos trabalhadores livres e semilivres, das cidades e do campo, e converteu o Estado em uma fortaleza inconquistável dos estratos mais poderosos e mais ricos das classes possuidoras e dominantes”.


Nessa direção, ele fica perto de ver na república que sucede à ditadura apenas a redefinição da autocracia burguesa. Nesses momentos, a descrição da realidade como se ela fosse um circuito fechado, uma viagem redonda ou um mundo de completa reificação, aproxima o pessimismo político de Florestan de outras correntes de cujas sociologias ele costumava desconfiar. Delas se distancia, entretanto, porque postula que essa “modalidade extrema de barbárie” esbarra na resistência dos oprimidos e na inexorabilidade da luta para democratizar o Estado e civilizar a sociedade civil.


Nas páginas seguintes, como se voltando sobre seus próprios passos, reconhece as contradições e possibilidades abertas pela experiência em curso, como se o sociólogo se impusesse ao militante socialista. Tais polaridades perpassam cada argumento, a exposição mantém e suporta a “evidente contradição entre a realidade descrita e o futuro previsto”. É difícil dizer se é o dilaceramento intelectual que induz o existencial ou o contrário, o fato é que dualidade analítica e tensão heróica entre o “desespero” e o “empenho de não ceder e de lutar” formam a mesma moeda.


Tudo isso faz do Florestan político e jornalista uma figura distinta, mas tão única como o acadêmico: em ambos, o olhar é sempre a partir de baixo, o ressentimento de classe se transformou em força produtiva, seu esplêndido isolamento confirma a perversidade de nosso processo histórico.’