O diretor de Redação da Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho, anuncia para este ano uma grande pesquisa de hábitos de mídia capaz de ajudar o jornal a encontrar caminhos novos. “A mídia vive hoje um período de muito debate interno a respeito dos caminhos do jornalismo, de como preservar o jornalismo dito de qualidade, o jornalismo que ambiciona manter certos compromissos em relação à qualidade em um ambiente de competição crescente, inclusive com meios que trafegam numa zona cinzenta entre o jornalismo e o entretenimento’, diz.
Para Frias Filho, no episódio do mensalão “ficou muito claramente estabelecido que havia um maquinismo de corrupção funcionando dentro do governo. Que este maquinismo ultrapassava as fronteiras entre Estado e partido. Ficou muito configurado um aparelhamento dos setores do governo pelo partido. E ficou configurado também que isso tudo acontecia ou por anuência ou por omissão do presidente da República”.
O jornalista está convencido de que o desempenho da economia, “entre sofrível e razoável”, e “uma mentalidade de servilismo em relação ao PT, em relação à figura simbólica do Lula”, explicam por que as denúncias não produziram efeitos práticos, como ocorreu no caso de Fernando Collor [1990-92], quando houve recessão econômica profunda e havia na mídia e nos aparelhos culturais da sociedade uma mentalidade muito hostil ao presidente, enfim deposto.
O diretor de Redação da Folha diz que a coluna assinada no jornal, na década de 1970, por Alberto Dines – hoje editor-responsável deste Observatório da Imprensa –, teve um papel precursor na mídia brasileira. Frias Filho esperaria mais comentários de caráter amplo sobre a mídia na coluna dominical dos ombudsmans da Folha. Até hoje, desde sua criação, em 1989, a coluna fala prioritariamente da própria Folha.
A entrevista foi feita em 19 de abril. Otavio Frias Filho não pôde estar no jornal na hora marcada – dez dias depois, quando morreu Octavio Frias de Oliveira, a razão dessa impossibilidade ficou patente – mas fez questão de falar: a conversa se realizou por telefone e foi gravada. Ela é reproduzida aqui praticamente na íntegra, expurgados apenas, da fala do entrevistador, alguns vícios de linguagem coloquial e comentários laterais.
Mídia hoje fala mais de si própria do que há vinte ou trinta anos
Eu gostaria de ouvir o senhor a respeito da utilidade de se contar histórias de um meio de comunicação. No caso do livro A trajetória de Octavio Frias de Oliveira, de Engel Paschoal, não temos um estudo sobre o jornal, mas há muita história do jornal. Como o senhor avalia essa contribuição para uma consciência maior?
Otavio Frias Filho – Eu só posso avaliar positivamente. Os jornalistas, de modo geral, estão sempre empenhados, não digo em contar a história do que está ocorrendo na sociedade, mas pelo menos em fazer um primeiro esboço dessa história. Conhecem pouco a história da própria imprensa, até porque no Brasil existe uma tradição pequena de monografias e estudos sobre os meios de comunicação. Quanto mais pesquisa sobre a história desses meios houver, melhor para a profissão, para a sociedade, para todo mundo.
A mídia não gosta de falar da mídia. Não sei se as pessoas que fazem os veículos, os proprietários, os editores, se sentem um pouco acima da sociedade.
O.F.F. – Não sei se eu concordo muito com a premissa. Em décadas passadas eu concordaria. Era raro, há vinte ou trinta anos, digamos, se encontrarem histórias sobre a própria mídia nos jornais ou nas revistas. Mas eu tenho a sensação de que nesses últimos vinte ou trinta anos a situação mudou. Eu até com alguma freqüência ouço a crítica oposta a essa, ou seja, de que a mídia fala demais dela própria.
Não se pode obrigar os ombudsmans a fazer uma crítica mais ampla
Nesse caso creio que a referência é a um discurso quase propagandístico. Mas expor problemas, discutir rumos, e até um falar do outro, porque jornal é público, vai para todo mundo… Todo mundo pode ler e dizer: Isso está bem feito, isso não está bem feito. Mas eu queria passar para um outro ponto, que é a questão da linha interna de crítica na Folha, que começa e segue mais voltada para o próprio jornal. Há um momento em que, na Folha, Alberto Dines começa a falar de toda a mídia. E vinte anos depois, em 1996, vai nascer o Observatório da Imprensa, no fundo uma retomada desse trabalho. Eu queria ouvi-lo a respeito dessas duas linhas de trabalho: a que até hoje é a do ombudsman da Folha, e a outra, que é a da discussão como cidadãos, inseridos na sociedade, do trabalho dos meios de comunicação.
O.F.F. – A coluna do Dines teve um papel precursor na mídia brasileira, e, especificamente na Folha, e a partir já dos anos oitenta [1989] a Folha passou a ter um profissional exercendo a função de ombudsman, fazendo a crítica dos meios de comunicação aos domingos. Na estrutura de funcionamento do ombudsman na Folha, a crítica interna, que ele faz diariamente, é voltada para a edição da Folha daquele próprio dia. E a coluna dominical em tese é uma coluna onde o ombudsman comenta e critica o desempenho da mídia como um todo. Inclusive no pé da própria coluna publicada na Folha aos domingos existe um enunciado dizendo que o objetivo da coluna é a discussão dos meios de comunicação como um todo. [“(….) Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação”.] Mas de fato a praxe adotada pela maioria dos ombudsmans da Folha tem sido a de ocupar o maior espaço das colunas de domingo com observações e comentários sobre a própria Folha. Eventualmente se comentam também os meios de comunicação.
Não seria interessante pensar em ampliar um pouco isso, caminhar mais na direção de discutir a mídia como um serviço público?
O.F.F. – O que o ombudsman escreve é livre. A expectativa é de que ele discuta os meios de comunicação como um todo. Mas eu não posso obrigá-lo a fazer isso.
A trajetória de uma geração de empresários modernizadores
O livro A Trajetória de Octavio Frias de Oliveira relata toda uma batalha empresarial na Folha que, em determinada etapa, se torna uma batalha editorial. O que ainda precisa ser pesquisado a respeito desse processo, que é quase sempre apresentado de modo muito simplificado, às vezes até caricatural, quando se diz, por exemplo, “Criaram a página de opinião e isso mudou tudo”? Não pode ter sido só isso. Senão o jornal não teria as qualidades que tem na reportagem, na edição. Não seria o caso de estudar melhor toda essa transição, para tirar dela algumas lições?
O.F.F. – Talvez seja ainda um pouco cedo para um estudo retrospectivo desse período todo. A própria Folha publicou nos anos 80 um livro de autoria de Carlos Guilherme Mota e de Maria Helena Capelato, História da Folha de S. Paulo – 1921-1981 [1981], e mais recentemente Carlos Eduardo Lins da Silva publicou um livro que se chama Mil Dias, sobre o período de mudanças na Folha nos anos 80, começo dos anos 90. Esse livro foi até reeditado recentemente [Mil Dias: Seis Mil Dias Depois, 2005].
Agora, a biografia sobre o meu pai transcende muito isso. Esse período de mudanças na Folha, mais recentemente, foi apenas um episódio. O escopo, a dimensão do livro sobre meu pai, a meu ver, é muito maior que isso. Reconstitui, através da vida dele, na verdade, todo o trabalho de uma geração de empresários modernizadores que atuaram em vários setores, a exemplo do meu pai, que atuou no setor bancário, no setor imobiliário, no setor também do que hoje a gente chamaria de agrobusiness, e também, evidentemente, no setor de comunicações.
Vitória empresarial, vitória editorial, relações com a ditadura
A Folha, de uma maneira ou de outra, forneceu uma resposta que no Brasil acabou se tornando “a” resposta a uma crise de transição para a democracia de uma imprensa que basicamente tinha compactuado, até apoiado ou se acovardado em face do regime, isso em todos os meios, inclusive a própria Folha. E na década de 90 a Folha teve uma nova experiência vitoriosa com o Universo Online. Agora nós vivemos na imprensa uma nova crise. De alguma maneira relacionada com mais democracia no país, em primeiro lugar, e com uma coisa nova, permitida por uma tecnologia diferente, a interatividade. Eu não tenho notícia de que se esteja discutindo um novo grande projeto. Neste momento, em abril de 2007, a Folha repete a fórmula de associar o jornal a fascículo, o Diário de S. Paulo está fazendo miniaturas de automóveis. Eu pergunto se e quando a Folha pretende se arriscar em novos caminhos. E aí o “arriscar” não é gratuito. Baseia-se numa frase de Octavio Frias de Oliveira: “Sem risco você não chega a lugar nenhum”.
O.F.F. – Eu discordo da premissa. Eu acho que no período do regime militar, pelo menos em vários momentos, vários trechos daquele período, os jornais tiveram uma atitude muito crítica. Para não mencionar os momentos em que a própria Folha desempenhou esse papel, basta lembrar o quanto o Estado de S. Paulo, o Jornal do Brasil, em alguns períodos também a revista Veja, tiveram uma atitude crítica e procuraram, na medida do possível, repelir a censura que na época se abatia sobre os meios de comunicação. E a minha outra discordância é que o choque político que levou ao regime militar dividiu a sociedade ao meio. Você tinha, durante o regime militar, duas visões. Uma visão autoritária, censuradora, que mantinha, digamos, os parâmetros de organização da sociedade, e uma visão que se insurgia até por meio da luta armada com o objetivo de instalar uma ditadura de partido único no Brasil. As coisas não são tão simples como você colocou.
Havia um confronto, a meu ver, e esse confronto dividiu o mundo em duas esferas. E essas duas esferas estavam mantendo um enfrentamento inclusive em termos armados em várias regiões do mundo, como ocorreu também no Brasil. Então acho simplista dizer que na época do regime militar a questão que se colocava era entre ditadura e democracia. Porque não era. Era entre uma ditadura de direita e entre grupos que pretendiam instalar uma ditadura de partido único de esquerda no Brasil. Essa é a minha visão.
Eu não tenho essa visão. Acho até que existe um exagero muito grande na dimensão que se dá à luta armada como um caminho quase exclusivo. Sempre me insurjo contra isso, até porque eu vivi o período, participei, nunca peguei numa arma e nunca pensei em fazê-lo. Existiu um outro processo, inclusive na imprensa há o nascimento de jornais puramente oposicionistas, Opinião, Movimento, O Pasquim, O Repórter, houve todo um movimento. Isso não podia acontecer na televisão, evidentemente. Mas na mídia impressa aconteceu. E, de outro lado, eu usei o advérbio “basicamente”. Não estou dizendo, de jeito nenhum, que os jornais só tiveram isso. Há várias passagens de resistência, muitas. Até algumas coisas que se dizem hoje da Rede Globo, que ela só tinha interesse em apoiar o regime e disso se beneficiar, também não foram assim. Houve muita pressão do regime, é sempre muito difícil.
Há uma discrepância de visão, mas esse não é o nosso foco aqui. Chegou um momento na história do Brasil, e me parece emanar com clareza da trajetória da Folha, em que era preciso dar uma resposta jornalística a uma realidade nova. A Folha fez isso. Fez com tanto sucesso que influenciou todo mundo. Ela foi “a” resposta que surgiu no Brasil. Talvez a mais “redonda”, a mais incisiva, para esse dilema. Hoje não se tem problema de democracia, felizmente – a não ser que nós apontemos as imperfeições da democracia brasileira, e elas não faltarão –, mas se tem um problema de imprensa: jornais e revistas estão vivendo uma crise.
Meu interesse maior não é nem olhar para trás, de jeito nenhum, embora eu ache que isso é importante. Mas, olhando para a frente, podemos imaginar que vocês, na Folha, estão se mexendo, ou estão se preocupando para tentar alguma resposta diferenciada, uma coisa nova?
Superoferta de informações criou momento difícil para o jornalismo
O.F.F. – Eu concordo que o jornalismo vive um momento difícil, por conta de uma superoferta de informação, sob modalidades as mais diversas e por conta de uma competição crescente dessas informações pela atenção e pelo tempo do leitor. Essa crise pode ser muito fecunda. Pode apontar caminhos novos, forçar mudanças que possam ser úteis para a sociedade. Nós temos discutido muito essa situação internamente. Eu acho que a mídia vive hoje um período de muito debate interno a respeito dos caminhos do jornalismo, de como preservar o jornalismo dito de qualidade, o jornalismo que ambiciona manter certos compromissos em relação à qualidade em um ambiente de competição crescente, inclusive com meios que trafegam numa zona cinzenta entre o jornalismo e o entretenimento. Temos discutido muito isso, vamos fazer uma pesquisa grande de hábitos de mídia junto ao leitor da Folha neste ano – já fazia seis anos que não realizávamos uma pesquisa dessa envergadura –, e estamos procurando acompanhar o debate internacional a respeito da coexistência das duas plataformas – a impressa e a eletrônica. Tem sido um período de muita mudança e a Folha tem mudado. Não tem mudado de uma maneira impensada ou precipitada, mas, nos últimos anos, a Folha tem mudado bastante.
Cotidiano, caderno mais lido da Folha, sinaliza mudanças
Onde, hoje, dentro da Folha, se poderia enxergar um dínamo de excelência, destacado? Sem querer fazer injustiça a nenhum dos jornalistas que trabalham todos os dias no jornal.
O.F.F. – A reforma gráfica que a Folha fez, há quase dois anos, abriu toda uma nova gama de possibilidades para uma ação do jornal em direção ao interesse concreto do leitor. Temos hoje um jornal que é menos voltado a temas institucionais e é mais voltado a temas da dimensão concreta, da vida real, prática, cotidiana do leitor. Acho que essa é uma das mudanças que tem havido. Por outro lado, no ambiente em que o grosso da informação se tornou uma mercadoria divulgada com muita facilidade de circulação e muitas vezes de modo gratuito, o elenco de analistas e de articulistas ganha uma relevância inédita, e nós temos procurado assegurar que o elenco de colunistas da Folha seja representativo de diferentes tendências, garanta o que eu chamaria de biodiversidade de opiniões, de pontos de vista, dentro do jornal, e sejam pessoas que tenham méritos intrínsecos como colunistas, como qualidade de texto. Acho que o elenco de colunistas da Folha é um atrativo muito importante com que o jornal conta neste período.
Temos feito experiências a meu ver interessantes na área do caderno Cotidiano, que é o centro de gravidade do jornal – segundo todas as pesquisas, é o caderno mais lido. Enfim, realmente eu não quero especificar muito para não parecer que estou privilegiando certas áreas em detrimento de outras. Mas ela tem mudado, tem avançado. Mais lentamente talvez do que nós gostaríamos, mas continua um avanço, a meu ver, seguro.
“Havia um maquinismo de corrupção funcionando dentro do governo”
A crise do mensalão parece ter mostrado algumas limitações na imprensa. Primeiro, a cobertura não foi satisfatória – cito a opinião de Marcelo Beraba [ombudsman até o início de abril]. Dependeu muito de autoridades, de CPI, de declarações oficiais, e isso acaba prejudicando. Uma coisa que chamou muito a atenção é que não se obtiveram as conseqüências políticas esperadas da denúncia de irregularidades e do abandono pelo presidente e pelo seu partido do discurso da ética na política. É uma impotência. Senti assim. Porque nós, Observatório da Imprensa, levamos pancada como se fôssemos um elemento a mais dessa mídia que se antagonizou ao governo: “Viu? Vocês perderam a eleição!” “Como assim, perderam a eleição?!” Eu queria ouvir sua opinião sobre essa passagem recente.
O.F.F. – Eu acho que se investigou e levantaram-se evidências bastante convincentes. Me parece que ficou muito claramente estabelecido que havia um maquinismo de corrupção funcionando dentro do governo. Que este maquinismo ultrapassava as fronteiras entre Estado e partido. Ficou muito configurado um aparelhamento dos setores do governo pelo partido. E ficou configurado também que isso tudo acontecia ou por anuência ou por omissão do presidente da República. Em relação a esses fatos me parece que não há muita dúvida. Mas não houve conseqüência real, prática, eu diria, por duas razões: porque a economia tem se desempenhado de forma entre sofrível e razoável – ao contrário, por exemplo, do período do Collor, quando o governo provocou uma recessão muito profunda –, e essa foi a principal razão estrutural que acabou levando à derrubada do Collor. E, por outro lado, no período do Collor havia uma mentalidade predominante na mídia, nos aparelhos culturais da sociedade, nas universidades, entre os intelectuais, os artistas, muito hostil ao Collor. E hoje em dia esses aparelhos culturais ainda padecem de uma mentalidade de servilismo em relação ao PT, em relação à figura simbólica do Lula. Acho que em relação às conseqüências da crise do mensalão, as diferenças se deram por essas duas razões. Este é meu ponto de vista.
Empresa famíliar sem conflitos
No perfil de Octavio Frias de Oliveira traçado no livro se enxerga uma coesão familiar diferente do que se conhece de outras empresas, por exemplo Jornal do Brasil, Estado de S. Paulo, Editora Abril. As Organizações Globo tiveram que contratar uma executiva para organizar uma sucessão que poderia se tornar conflituosa. Na Folha houve unidade de comando e rumos bem definidos. Isso pode ter ajudado?
O.F.F. – Sim. Eu diria que no caso da Folha nós tivemos uma certa sorte. Primeiro, a figura muito predominante do meu pai. Ele ainda acompanha a estratégia geral da empresa, dá a última palavra sobre as decisões mais importantes [a entrevista, como se lê na introdução, foi feita dias antes da morte de Frias]. A liderança do meu pai é uma liderança definitiva. E um aspecto secundário foi uma circunstância familiar, ocasional: meu irmão tem vocação empresarial e eu não tenho. Nós não temos razões objetivas, sequer, para entrar em desentendimento.
(Transcrição feita com a colaboração de Tatiane Klein.)