É um truísmo da sociologia que toda sociedade, em qualquer época e lugar, cria ou utiliza ritos periódicos para promover a coesão social e a propagação de valores sem os quais ela seria impossível.
Isso não quer dizer que os valores pautem necessariamente o comportamento individual e as relações entre os setores que formam a sociedade. Nem por isso a sua reiteração é um exercício oco, sem consequências.
Quando se fala que a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude se reconhece que, com certeza no plano dos símbolos e das convicções, e em alguma medida no plano dos atos, a virtude – os valores compartilhados ao menos pela maioria dos membros de um corpo social – prevalece sobre os vícios, a sua negação.
As cerimônias do adeus, como diria Simone de Beauvoir, são um desses momentos que se prestam à difusão dos valores que presumivelmente cimentam a integração social. Ou, no mínimo, impedem o esgarçamento completo do tecido social.
Portanto, quando morre alguma figura de destaque numa sociedade, destilam as crenças dessa sociedade os elogios fúnebres a sua pessoa e o que se divulga como sendo a sua biografia – ‘como sendo’, porque, nessas horas, mais do que nunca, vale o De mortuis nil nisi bonum dos romanos [dos mortos, só se devem afirmar coisas boas].
Por exemplo, a ética do trabalho emerge vitoriosa das manifestações que louvam, numa palavra, o empreendedorismo do falecido, o contraste entre a sua frugalidade pessoal e a dedicação plena à atividade de sua escolha. Esses registros servem objetivamente para consagrar, no caso, a noção de que o empenho em progredir é um comportamento a ser imitado.
Leu-se muito disso nos relatos, comentários e depoimentos pessoais sobre o legendário publisher da Folha, Octavio Frias de Oliveira, falecido domingo aos 94 anos e sepultado ontem.
Mas leu-se reiteradamente outra coisa também, que remete aos valores do ofício jornalístico. Da reconstrução da biografia desse que foi um dos mais talentosos jornalistas-não jornalistas da história brasileira, da memória de episódios que dele exigiram decisões críticas e até do seu anedotário profissional emerge uma espécie de ideal midiático, construído sobre um par de fundamentos.
Um, a independência: a credibilidade de uma empresa jornalística, pedra de toque do seu êxito emprearial, será tanto maior quanto maior for a sua independência dos poderes político e econômico. [Os americanos chamam isso de ‘imprensa sem favor nem temor’.]
Outro, o pluralismo: o respeito e a importância dados a um órgão de mídia serão tanto maiores quanto maior for a diversidade de opiniões que acolher nos seus espaços.
Existem, é verdade, empresas de comunicação bem sucedidas que não apenas não são independentes, no sentido de que tanto falava o velho Frias, como tampouco se abrem para a divergência das convicções de seus donos, especialmente diante da política e da economia.
Mas o ponto a destacar não é a firmeza dos laços entre a realidade e os valores. E sim o de que, seja a mídia brasileira menos ou mais independente, menos ou mais pluralista, o que se dela se espera é a nota máxima nos dois quesitos.
A ênfase nesses valores, quando morre o último dos megaempresários do jornalismo brasileiro, e a associação entre eles, robustecida pelo fato de a Folha que ele reinventou ser o mais lido jornal do país, representam dois formidáveis fachos de luz.
P.S. Enfim o presidente Lula e o antecessor Fernando Henrique ficaram lado a lado: significativamente no enterro do velho Frias, cujo diário bate(u) bastante em um e no outro.
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