Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Globo colhe o que plantou

Já há algum tempo, o Globo deu de investir em séries de matérias – uma delas foi sobre a impunidade no Brasil; a destes dias é sobre a mortandade nas estradas brasileiras.

O conjunto da obra já credencia o jornal como o mais ambicioso, talvez, da imprensa nacional, em dar ao leitor o mais próximo daquilo que nas redações se apelidou “tudo sobre” – abordagens abrangentes de assuntos de evidente interesse público.

Agora, o Globo acaba de colher o que plantou por uma série de trabalhos em particular, a estupenda sequência de reportagens “Os brasileiros que ainda vivem na ditadura”, publicada a partir de 19 de agosto.

A colheita está na decisão de dar ao jornal o 24º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, o segundo mais antigo de jornalismo no Brasil. [O primeiro é o Esso].

“Os brasileiros que ainda vivem na ditadura” são o 1,5 milhão de moradores de favelas cariocas sob a tirania combinada dos traficantes, milícias e policiais corruptos. À parte os méritos do trabalho, o prêmio vem a calhar quando o filme Tropa de Elite é o assusnto da temporada.

Os jornalistas Carla Rocha, Dimmi Amora, Fábio Vasconcellos, Sérgio Ramalho, Paulo Motta, Angelina Nunes e Custódio Coimbra passaram quatro meses percorrendo favelas, analisando documentos e entrevistando cerca de 200 pessoas.

As reportagens focalizaram, cada qual, execuções, invasões de domicílio, tortura, exílio e desaparecimentos.

Mereciam ser editadas em forma de livro.

Sob o título “Denúncias ainda estão sem solução”, o Globo de hoje atualiza alguns dos casos apontados. Ei-los, um a um:

“Quarenta e um dias depois do desaparecimento do líder comunitário da Favela Kelson’s, Jorge da Silva Siqueira Neto, as investigações do caso estão praticamente estagnadas.

Por ordem do secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, e do chefe de Polícia Civil, Gilberto Ribeiro, o inquérito corre em sigilo. Apesar disso, O Globo já noticiou que teste de DNA no material retirado de um corpo reconhecido informalmente pelos parentes da vítima até hoje não foi feito.

Jorge foi seqüestrado no dia de setembro, 11 dias após contar sua história na série “Os brasileiros que ainda vivem na ditadura”. Quatro dias antes, quatro dos cinco PMs denunciados por ele, que chegaram ser detidos administrativamente por 72 horas, haviam sido soltos pela corporação.

Jorge, que era presidente da associação de moradores da favela, na Penha, acusava esses PMs de integrar uma milícia que tomou a favela do tráfico e o expulsou de lá. Ameaçado de morte, o líder comunitário havia denunciado os policiais nas corregedorias da PM e Geral Unificada, na Defensoria Pública, no Ministério Público estadual e na Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio.”

“Outro caso denunciado na série foi o do mototaxista Diego Daltro, de 23 anos, desaparecido em 6 de março deste ano, após desentendimento com um PM ligado a uma milícia de Jacarepaguá. Diego, que levava uma passageira de moto ao Largo da Preguiça, foi fechado por um Audi A4 e um Gol. O rapaz tentou escapar, mas foi seqüestrado pelos ocupantes dos veículos.

Diego é um dos 10.464 desaparecidos catalogados de 1993 até junho pelo Serviço de Descoberta de Paradeiros da Delegacia de Homicídios, incluindo dados das unidades da Zona Oeste e da Baixada Fluminense.

Desse total, 70% (7.324) dos casos estariam relacionados à ação do tráfico e, mais recentemente, das milícias. Um número 54 vezes maior do que os 136 desaparecidos políticos do regime militar, segundo levantamento do Tortura Nunca Mais.

Ontem, o delegado Paulo Henrique Pinto, da Delegacia de Homicídios da Zona Oeste, disse que o caso está prestes a ser encerrado, mas que não poderia revelar detalhes para não atrapalhar as investigações: “Já tenho evidências da participação dos suspeitos no crime.”

O pai de Diego, Cláudio Daltro Barbosa, de 50 anos, que tatuou nas costas uma carta de despedida para o filho, continua a ir semanalmente à delegacia. A investigação da DH-Oeste chegou a três suspeitos, entre eles o PM conhecido como Juninho Cerol e um policial civil.”

“A história de Taís Louise, de 18 anos, também foi contada. Depois da série de reportagens, a traficante Roseli dos Santos Costa, conhecida como Rose Peituda, acusada do desaparecimento da jovem, foi presa, mas o corpo de Taís ainda não foi localizado.

Rose teria se vingado da jovem, que se apaixonara pelo chefe do tráfico do Morro do Barbante, na Ilha, com quem era casada. A vítima teria sido torturada, esquartejada e queimada no alto do morro.”

P.S. O ângulo brasileiro

Nada como ler matérias sobre a vida em outros países escritas por mãos brasileiras. Podem não trazer grandes novidades aos mais informados pela mídia em língua estrangeira, sobretudo na era das edições online. Mas o ângulo é nosso, o que faz diferença na digestão da informação.

Hoje, Folha e Estado oferecem exemplos à la carte. Enviados para cobrir o 17º congresso do Partido Comunista Chinês, a repórter [e ex-correspondente em Pequim] Cláudia Trevisan, pela Folha, e José Eduardo Barella, pelo Estado, contam três histórias que são flagrantes bem focalizados do cotidiano no Planeta China.

Cláudia abordou o consumismo chinês em duas matérias. Uma descreve como as grandes marcas internacionais, tipo Starbucks, Zara, Ikea, BMW, lucram no país nominalmente comunista. A nova classe média, maior beneficiária do crescimento econômico, “gasta em um dia o salário de trabalhador migrante”.

A segunda matéria relata que os consumidores que fazem jus ao nome na China são pouco mais de 10% da população – uns 150 mihões.

Deve ser muito ruim viver num país tão injusto socialmente.

O outro lado da moeda é mostrado por José Eduardo, do Estado. Ele foi ver quem ainda visita o mausoléu de Mao Tsé-tung, na Praça da Paz Celestial, em Pequim. “É a China real”, informa, numa alusão aos mais de 650 milhões que vivem na zona rural. É a principal atração da capital para os turistas da vasta população camponesa da China.

Menos mal não viver num país onde se cultuam esquifes de ditadores mortos.