Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalismo em tempo de cólera

Cumprindo o que prometeu no discurso de despedida, o ministro demissionário José Dirceu soltou os cachorros ontem à noite diante de 2 mil companheiros, entre eles 15 ministros, reunidos em ato de desagravo a ele, ao PT e ao presidente Lula.

Disse que a oposição está “brincando com fogo” e subscreveu, com outras palavras, a tese que o cientista político mineiro Wanderley Guilherme dos Santos vem expondo em sucessivos artigos no Valor – e que têm causado furor na Internet – segundo a qual as denúncias de corrupção são a fachada de um “golpismo em branco” sediado em São Paulo, numa aliança entre o “caudilhismo ilustrado” do PSDB e o “lacerdismo” paulista.

Citou, como prova, a reportagem do Estado do mesmo dia sobre alegada tentativa do PT de comprar por R$ 4 milhões o apoio do PPS na Câmara paulistana à então prefeita Marta Suplicy. Os compradores teriam sido o secretário geral do PT, Sílvio Pereira, e o secretário de Comunicação de Marta, Valdemir Garreta.

Palavras de Dirceu, segundo o próprio Estado: “Quem pode aceitar que um jornal com a responsabilidade de O Estado de S.Paulo publique a matéria que publicou hoje nos acusando de tentar comprar outro partido? Depois de duas horas, tudo está desmentido. E é matéria de primeira página.”

Ele tinha um ponto. Assinada pelo repórter furão Expedito Filho (ex-Veja), a matéria se baseava numa única fonte – anônima.

Hoje, porém, Expedito mostrou o que teria sido o pau com que teria matado a cobra: o tesoureiro do PPS, Ruy Vicentini, que por sua vez é citado como tendo dito que duas pessoas, “um ex-vereador e um ex-dirigente do PPS” estavam com ele na padaria onde, em um café da manhã com Sílvio e Garreta (um costuma ser chamado pelo prenome, o outro pelo sobrenome), estes, “autorizados pelo tesoureiro do partido, Delúbio Soares”, lhe ofereceram os tais R$ 4 milhões. Sempre segundo Vicentini, citado por Expedito, “o diretório nacional tomou conhecimento. Está em ata”.

Mas, como diria a Alice do país das maravilhas, as coisas estão ficando mais curiosas e mais curiosas. Vicentini confirmou o que tinha dito antes em “off” ao repórter: o PT teria uma conta, presumivelmente para esse tipo de despesa, no Trade Link Bank, em Miami. Dalí, o dinheiro seria internado no Brasil “pela conta do pessoal no Banco Rural”.

Só que o tesoureiro do PPS disse também onde e de quem ficou sabendo disso: numa cela da Polícia Federal, do doleiro Toninho Barcelona e de outros dois cambistas. Mas por que raios o contador, nos dois sentidos, do partido que sucedeu ao velho Partidão, o PCB, tinha ido em cana?

Essa, segundo ele mesmo, “é uma outra história”, que ele conta em palavras talvez poucas demais e da qual se diz inocente – “eu era testemunha, não era réu”.

Por que agora?

E tem mais “só que”: o dirigente do PPS que teria participado do desjejum com a dupla petista, o presidente do diretório municipal Carlos Fernandes, nega no próprio Estado a sua alegada participação. E levantou uma lebre: por que esse suposto episódio de um ano atrás está sendo contado justamente agora, deixando o PPS na mesma cela moral do PTB de Roberto Jefferson.

Ainda no Estado, o deputado federal João Herrmann, do PDT, também envolvido indiretamente no nebuloso episódio por Vicentini, disse que ele, Herrmann, tem biografia, e o tesoureiro, prontuário, “foi processado, condenado e preso anteriormente”.

Já a Folha, que rebaixa Vicentini a “2° tesoureiro” do PPS paulistano, informa que “os próprios dirigentes do PPS desautorizaram o – e repete a designação – 2° tesoureiro”.

“É uma história sem pé nem cabeça”, repele o principal desses dirigentes, o deputado estadual Arnaldo Jardim, presidente do PPS paulista. “Dinheiro e corrupção nunca frequentaram as nossas conversas” com o PT.

Vai mal, ora pois. Numa hipótese extrema, Carlos Fernandes e Arnaldo Jardim podem estar mentindo, e Vicentini – tesoureiro ou sub, ou sub do sub, tanto faz – pode estar dizendo a verdade. Além disso, qualquer que seja a presumível validade de denúncias feitas por quem tem prontuário, não está escrito nas estrelas que sejam falsas por definição.

Mas, como eu disse, é uma hipótese extrema. E, neste tempo de cólera, quanto mais não seja para deixar numa saia justa o jornal que abomina o PT, teria sido prudente: 1) não publicar denúncia desse gênero de uma única fonte sem identificação; 2) não dar tanto espaço (quase uma pagina) à suspeitíssima história – embora, justiça se faça, ali constem todos os desmentidos a que os acusados têm direito.

Um jornalista pedir prudência a outros jornalistas pode parecer um crime de lesa-jornalismo. Mas a melhor maneira ao alcance dos donos e editores de órgãos de mídia de deixarem falando sozinhos os que os acusam de golpismo – do encolerizado Wanderley Guilherme ao ameaçador ministro caído no processo (como diziam os comunistas) – é medir as palavras que publicam como se verdadeiras fossem ou parecessem e distribuir caldo de galinha às mancheias nas suas redações.

Mesmo deixando a ética de lado, é mais proveitoso correr o risco de ser furado do que o de ser desacreditado. Portanto, abaixo as teorias conspiratórias, sim. Mas abaixo o denuncismo, também.

P.S. ‘O Brasil está diante de uma grande mentira’, escreve hoje no Estado o presidente do PT, José Genoíno, sobre as acusações de corrupção ao partido e de indícios de corrupção no governo. Pode estar, pode não estar. Mas uma coisa é certa: o leitor está diante de um grande texto. [Acrescentado às 15h15 de 18/6.]