O documento "Jornalismo na era pós-industrial", sobre o qual conversamos no post anterior é bem mais complexo do que parece a uma primeira vista e toca em pontos que merecem um detalhamento porque podem servir de base para a revisão de uma série de conceitos e valores incrustados há décadas na atividade jornalística.
Para começar, os autores do documento partem da constatação de que o jornalista já não é mais o primeiro a chegar ao local dos fatos. Com a popularização das ferramentas digitais de registro como texto, fotos, imagens e interatividade, as histórias sobre o que aconteceu ou está acontecendo passam cada vez mais a ficar na esfera das testemunhas, participantes, vítimas ou afetados .
Até o surgimento das novas tecnologias de comunicação e informação (TICs), um fato só passava a existir como evento social na medida em que fosse divulgado pelos canais da comunicação, pois a imprensa tinha o controle da distribuição de notícias. Uma limitação técnica gerou a percepção de que a imprensa era a única credenciada para atestar a credibilidade, exatidão, relevância e pertinência de um fato, dado ou noticia.
Quando uma inovação tecnológica mostrou que a imprensa já não podia competir em instantaneidade e diversidade com os cidadãos comuns na hora de registrar eventos, surgiu uma categoria nova, a dos cidadãos informantes, pessoas que praticam atos jornalísticos e que passaram a ser vistos como jornalistas amadores.
Isso deu origem a perguntas, ainda sem respostas, do tipo: se cada pessoa pode hoje publicar um fato novo, que espaço fica disponível para os jornalistas na hora de informar? Onde fica a preocupação com o que os anglo-saxões chamam de original reporting, ou seja a idéia de que a autenticidade de uma notícia depende da presença do repórter no local dos acontecimentos?
Tudo indica que um dos novos papéis reservados para o exercício do jornalismo na era pós-industrial é o de contextualizador de noticias. Um dado, fato ou evento novo ganha sentido e relevância quando são conhecidos os seus antecedentes, consequências e interesses envolvidos. O profissional complementaria assim a coleta e distribuição do material reunido pelos amadores, mas inevitavelmente teria que ingressar noutras áreas do conhecimento para poder fazer isso.
O mesmo acontece no caso do jornalismo investigativo, onde o profissional para explicar fenômenos como a crise financeira mundial acaba tendo que entrar no terreno econômico, sociológico, político e outras disciplinas universitárias. Até agora, os jornalistas tomavam uma atitude olímpica diante dos pesquisadores acadêmicos e sobrevalorizavam os chamados especialistas, geralmente mais dispostos a tolerar repórteres para obter visibilidade pública.
Como profissionais e amadores no jornalismo vivem hoje num ambiente de avalancha informativa, a competição pela melhor contextualização de notícias tende a crescer e, com ela, a necessidade de ir mais fundo na busca de causas, consequências, interesses e envolvidos. Isto faz com que o jornalismo se torne multidisciplinar e os profissionais sejam levados a se incorporar a grupos de pesquisa na hora de fazer uma reportagem investigativa, por exemplo. Trata-se de uma mudança de rotina e de valores que vai gerar bastante desconforto na maioria dos jornalistas, porque sabemos que a relação deles com a universidade é complicada e cheia de queixas mútuas.
O novo ambiente informativo criado pelas TICs, pela superoferta de notícias e pela coexistência compulsória entre jornalistas profissionais e amadores coloca para os primeiros a difícil questão de saber qual o nicho onde atuarão. Nós, os jornalistas, estamos enfrentando um desafio parecido ao dos tecelões do início do século 19, quando a máquina a vapor os obrigou a buscar nichos especializados ou então mudar de profissão.
Muitas outras profissões passaram pelo mesmo dilema em épocas anteriores e seguramente não seremos os últimos. É triste ver as redações encolherem e os jornais fecharem, mas é necessário reconhecer que a realidade tem também um lado promissor. As TICs liberaram os jornalistas das tarefas mecânicas e repetitivas graças ao desenvolvimento dos algoritmos informativos e abriram a profissão para áreas muito mais criativas, como a narrativa multimídia, a contextualização de notícias e investigação de dados e eventos noticiosos.
Mais triste ainda é verificar que muito profissionais ainda não se deram conta disso.