Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Kirchner, Sarlo e a ditadura

O noticiário de Paris mostra hoje (24/3) o poder de bandidos que pegam carona em manifestações importantes contra uma medida que talvez seja certa, mas foi adotada por um governo que certamente é errado. A França é hoje um país governado por medos. O medo de Le Pen levou à eleição de Chirac. Há medo de mudanças no regime de relações de emprego. Há medo dos jovens incendiários dos subúrbios. Há medo do projeto atômico iraniano.


De tudo isso emerge uma simbologia, um 1968 baratinado, que valoriza a entrevista dada pela professora argentina Beatriz Sarlo a Sylvia Colombo na Folha de S. Paulo. Sarlo diz que Kirchner faz agora o que não fez após o golpe militar de trinta anos atrás, objeto de esdrúxulo feriado, como nota a repórter da Folha. Eis as palavras de Sarlo:


Kirchner foi um dos típicos jovens militantes que, assim que o golpe chegou, refugiou-se no interior do país e passou a dedicar-se a outra coisa. Hoje, sua colocação [posição] lhe permite fazer aquilo que gostaria de ter feito nos anos 70. É bom que agora aproveite o tempo perdido valorizando a memória dos desaparecidos e atuando junto a organizações de direitos humanos”.


Essa passagem foi a abertura e deu o título da entrevista, o que corresponde aos ditames do jornalismo, mas refere-se a algo que os historiadores chamariam de anedótico. A “pequena história”, o detalhe biográfico – que, de todo modo, pode ser representativo de uma situação mais ampla.


Mais importante é a autocrítica honesta feita por Beatriz Sarlo. Não tem tanto charme jornalístico (os jornais brasileiros se cansaram de embarcar no relato aureolado de seus próprios méritos feito pela ultra-esquerda aventureirista brasileira), mas tem densidade. Ela diz que ‘não se deve apenas lembrar o que fizeram os militares, mas também revelar o que foi a guerrilha e a experiência de violência política que se vivia na Argentina. (….) Afinal, no nosso passado, há atos guerrilheiros que foram puro terrorismo. Por isso é tão difícil reconstruir a história do golpe’.


E adiante:


“Folha – Muitos dos que viveram o golpe estão hoje atuantes na sociedade. Como eles mudaram?


Sarlo – A transição democrática nos transformou. Eu fui uma militante marxista-leninista. O aprendizado que tivemos com a ditadura é que o único regime em que faz sentido viver é o democrático. Mas, entre esses militantes, há os que sabem que precisam fazer uma análise crítica do passado e aqueles que têm uma visão nostálgica, romântica e juvenil.


Folha – Pode dar um exemplo de como esses ideais mudaram?


Sarlo – Sim. Quando assumiu, Kirchner mudou os juízes da Corte Suprema. Nos anos 70, quando todos nós éramos militantes de esquerda, não se pensava assim.


O que queríamos não era mudar os integrantes da corte, mas, simplesmente, eliminá-la da face da Terra, junto com os juízes e junto com o Estado burguês.


Folha – Como foi a sua atuação naquela época?


Sarlo – Eu era militante de um partido marxista-leninista pró-China. Não éramos guerrilheiros, mas pensávamos que era necessário organizar exércitos revolucionários. Quando digo isso, não deixo de sentir o caráter caricaturesco disso tudo. Mas estou disposta a dizê-lo. Não sinto nostalgia”.


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Em português, foram publicados os seguintes títulos de Beatriz Sarlo: A Paixão e a exceção, Cenas da vida pós-modernaPaisagens Imaginárias, Tempo Presente.