Um sinal salutar de autonomia da imprensa – no caso, a de não ceder à camaradagem corporativista entre jornalistas – marcou os dias de Carnaval. A polêmica surgida não deve prosperar, pois são outras as preocupações maiores dos maiores veículos de informação do país, mas merece registro.
De um lado, a revista Veja; do outro, o jornalista Daniel Piza e seu livro, ‘Machado de Assis, Um Gênio Brasileiro’, editado pela Imprensa Oficial de São Paulo. No centro a reportagem ‘Machado não merecia’, na qual a revista, escorada na opinião de ‘especialistas’, detona o livro de Piza por estar ‘repleto de erros’ e, portanto, conclui a reportagem, ‘falha no requisito primordial de uma obra de referência: a informação confiável’.
Os ‘especialistas’ citados na reportagem são dois: um deles é Wilson Martins, decano dos críticos literários do Brasil, com 84 anos, implacável em sua avaliação. ‘Tudo o que há de bom na biografia de Piza já se encontrava em Magalhães Júnior. O resto são erros factuais e ilações indevidas’, disse, referindo-se ao livro de 1981 de Raimundo Magalhães Junior, autor da última biografia do maior escritor brasileiro.
Veja sublinha ‘aberrações históricas’ apontadas por Wilson Martins, como a de identificar o santista José Bonifácio de Andrada, o ‘Patriarca da Independência’ dos livros escolares de história, como português. Ou ainda aponta a confusão envolvendo o mesmo José Bonifácio com o senador Diogo Antônio Feijó. No livro, Feijó é apresentado como tutor de dom Pedro II, quando, na verdade, ele pregava a destituição do verdadeiro tutor, José Bonifácio. Outras patacoadas são identificadas em boxe exclusivo (leia abaixo a reprodução), mas não se comparam em número e grau à série de erros apontada por outro ‘especialista’, o escritor e professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luís Augusto Fischer.
Fischer é pouco mencionado na reportagem, mas, em 7 de janeiro passado, no artigo ‘Machado com defeitos’, publicado pelo Zero Hora, de Porto Alegre, ele aponta uma série bem maior de equívocos impressos. Em seu texto, o professor abre elogiando aspectos positivos do livro, como a iconografia que retrata o período em que Machado de Assis viveu, e exercita sua generosidade apontando apenas seus ‘erros pequenos’, e recomenda, diante da fartura de disparates, que o autor ‘deveria tomar muito mais cuidado na precisão dos dados’.
‘Para além das eventuais divergências interpretativas que se possa ter, há erros, em número grande, desde alguns pequenos até outros grosseiros – alguns dos quais talvez só outro machadiano enxergue, mas enfim erros imperdoáveis’, crava o professor.
Num dos trechos bem humorados de seu texto, cuja leitura na íntegra se recomenda, Fischer sapeca:
‘Em datação, aliás, o livro derrapa várias vezes. Ao descrever o Rio de 1839, ano de nascimento de Machado, diz que na cidade ‘não havia telégrafo’, sendo este um índice de seu atraso. Ora, não apenas o Rio, mas o mundo todo ainda não dispunha de telégrafo, instrumento que em sua versão realmente útil ganha vida nos anos 1850. Quando está apresentando esses anos 1850, tropeça em outro anacronismo: fala da moda dos pianos ‘numa cidade ainda sem o entretenimento do cinema’ (p. 69). Claro, porque o cinema ainda não tinha sido inventado. Não se trata de pinimba deste resenhista, mas de precisão: o leitor que não se der conta de tais equívocos vai avaliar mal a posição relativa do Rio (e do jovem Machado) no mundo ocidental’.
O jornalista não demorou para reagir. No domingo, uma das notas da meia-página enche todos os domingos no O Estado de S.Paulo, a nota ‘Errata’. Piza defende-se da reportagem negativa da revista, dizendo não haver novidade no ‘jornalismo casca-grossa da seção ‘cultural’ da Veja‘. Quanto às avaliações de Wilson Martins e Luís Augusto Fischer, ele se acha vítima do ‘despeito academicista contra quem poupa os leitores de notas de rodapé e aridez verbal’.
O problema é que, mais uma vez, sobrou para o leitor, pois alguém está mentindo nessa história. Martins e Fischer apontam a abundância de erros como causa da desconfiança que o livro inspira. Piza abre sua defesa reconhecendo que cometeu ‘alguns lapsos lamentáveis’, mas transfere o problema para quem gastou seu rico dinheirinho comprando a primeira edição de seu livro, ao escrever, aliviado, que ‘felizmente meu livro Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro (Imprensa Oficial) chegou à segunda edição’.
A amostra dos equívocos, parcial, que se encontra nos artigos de Martins e Fischer comprova que são muito mais do que ‘alguns’. Mais grave ainda é que Piza se dá por feliz porque a segunda edição lhe deu a oportunidade de corrigir ‘alguns’ erros.
Diante do alívio do autor, é o caso de se perguntar: e quem comprou a primeira edição e hoje tem um mico na estante? Não seria o caso de adotar o mesmo procedimento da indústria automobilística e promover um recall, para a devida troca de exemplares micados por exemplares corrigidos ?
Íntegra do texto assinado por Luis Augusto Fischer
Machado, mas com defeitos – Zero Hora – 07/01/2006
O professor Luís Augusto Fischer analisa o livro de de Daniel Piza: biografia lança olhar panorâmico sobre o escritor fluminense, mas derrapa em erros
Os machadianos constituímos uma confraria. Não há reuniões nem inscrições, mas nos reconhecemos facilmente, pelo prazer da minúcia sobre um personagem, pelo gosto das interpretações sobre sua obra, pela obsessão sobre detalhes da vida ou do estilo. Diz o Aníbal Damasceno Ferreira, talvez o mais notório machadiano da redondeza, que o machadiano verdadeiro, o escocês, é aquele que, depois de passar uma hora conversando com outro machadiano, naturalmente sobre Machado de Assis, termina a conversa e pensa sobre o outro: ‘Tá aí um que não entende nada do Machado’.
Quer dizer que somos uns exclusivistas, porque o machadiano sempre acha que tem a chave mais pura, mais perfeita, mais profunda para decifrar a obra do gênio, talvez o mais alto gênio já produzido em língua portuguesa. Considerando esse preâmbulo, o prezado leitor saberá avaliar a presente resenha, que vai apreciar o recente Machado de Assis, um gênio brasileiro, biografia escrita por Daniel Piza, jornalista de conhecida atuação no ambiente cultural paulista e, por aí, brasileiro. (Alguém que escreve num jornal paulista é brasileiro só por isso, ao passo que quem escreve num jornal gaúcho ou pernambucano só será brasileiro com muita dificuldade. Enuncio o fato sem orgulho nem ressentimento: para modular a conversa.)
O trabalho de Daniel Piza tem vários méritos, a começar pelo fato de ser uma tentativa de visada panorâmica sobre Machado, envolvendo vida, obra e contexto histórico, e isso numa tradição cultural que, além de rarefeita, tem apresentado quase só estudos tópicos sobre Machado, desde trabalhos de enorme significação como os de Roberto Schwarz, John Gledson e Sidney Chalhoub (por motivos diversos) até os acanhados ou meramente circunstanciais. Acresce que a edição vem com farta e pertinente ilustração, oferecendo um espetáculo que raras vezes ocorre entre nós a respeito de um escritor. Para somar mais um mérito, a edição vem com índice onomástico, o que é uma bênção no Brasil.
Sendo um machadiano, Piza tem lá suas singularidades interpretativas. Pela bibliografia que lista (mas que nem sempre maneja), vê-se que está aparelhado com o que de melhor se produziu e produz sobre o autor. Faz uma ótima súmula da fortuna crítica machadiana, identificando a tônica das gerações sucessivas de intérpretes. Arrisca ele mesmo alguns vôos analíticos sobre contos, poemas e romances de Machado, algumas vezes com grande ganho, como é o caso de suas observações sobre o cru e duro ‘Pai contra mãe’, conto cujo desfecho Piza lê em ousada mas pertinente aproximação com as Memórias póstumas de Brás Cubas.
Um trabalho do nível deste, que se vê logo, deveria no entanto tomar muito mais cuidado na precisão dos dados. Para além das eventuais divergências interpretativas que se possa ter, há erros, em número grande, desde alguns pequenos até outros grosseiros – alguns dos quais talvez só outro machadiano enxergue, mas enfim erros imperdoáveis. Vejamos os pequenos. Quando recompõe a história do período de vida de Machado, diz, por exemplo, que D. João VI, assim que aqui chegou, em 1808, ‘transformou o Brasil em Vice-Reino’ (p. 50), coisa que na história real do país ocorreu em 1763 (D. João mudou o Brasil para Reino Unido em 1815). Em datação, aliás, o livro derrapa várias vezes. Ao descrever o Rio de 1839, ano de nascimento de Machado, diz que na cidade ‘não havia telégrafo’, sendo este um índice de seu atraso. Ora, não apenas o Rio, mas o mundo todo ainda não dispunha de telégrafo, instrumento que em sua versão realmente útil ganha vida nos anos 1850. Quando está apresentando esses anos 1850, tropeça em outro anacronismo: fala da moda dos pianos ‘numa cidade ainda sem o entretenimento do cinema’ (p. 69). Claro, porque o cinema ainda não tinha sido inventado. Não se trata de pinimba deste resenhista, mas de precisão: o leitor que não se der conta de tais equívocos vai avaliar mal a posição relativa do Rio (e do jovem Machado) no mundo ocidental.
O entrudo é descrito como ‘espécie de festa a fantasia em salões’ (p. 58), quando se trata, como é sabido, de uma festa popular de rua, truculenta e por isso mesmo censurada nas cidades que se aburguesavam, coisa que aliás vem comentada numa crônica de Machado citada na p. 275: ‘Eram tinas d’água (…) dentro das quais metiam à força um cidadão todo – chapéu, dignidade e botas. Eram seringas de lata; eram limões de cera. Davam-se batalhas porfiadas de casa a casa (…), não contando as bacias d’água despejadas à traição’. O conhecidíssimo agregado da família de Bento Santiago, em Dom Casmurro, é chamado de João Dias, quando seu nome é José Dias. Faltou revisão criteriosa.
Freqüentemente Piza resume o argumento de textos machadianos, com vistas a enquadrá-los na vida e na história; e muitas vezes comete erros comprometedores. Ao falar de Brás Cubas, interpreta alegoricamente este sobrenome dizendo que as cubas eram ‘vasilhas em geral usadas para vinho’ (p. 202), sendo que a palavra, diz ainda Piza, significa também ‘um sujeito matreiro, cuebas’. Quanto a esta segunda parte, é impossível imaginar de onde saiu; quanto à primeira, corresponde à primeira acepção no dicionário Houaiss – mas não corresponde a Machado. Os cubeiros, no século 19, eram ou fabricantes de cubas (grandes recipientes em geral), ou os carregadores das cubas em que eram despejados os dejetos das casas, especialmente os corporais. É de notar que esta última acepção está citada no próprio livro, na p. 49, quando vem contada a situação dos escravos encarregados do transporte das tais cubas para fora das casas.
Quando vai tratar de um clássico como O alienista, Piza erra duas vezes. Tira não sei de onde a idéia de que Simão Bacamarte ‘promete fazer uma revolução na ciência, aliando-se à teologia’ (p. 224), quando o médico confronta a ciência à teologia desde o começo. Depois, estraga parte importante do enredo ao afirmar que os vereadores de Itaguaí ‘ordenam então que os equilibrados é que sejam presos’, o que não ocorre, absolutamente, porque é Simão que altera seu critério, sobranceiro, contra as pretensões dos políticos. Erra ainda o livro em outras situações, que não cabem neste pequeno texto, como ao resumir os argumentos dos contos ‘Capítulo dos chapéus’, ‘Noite de almirante’, ‘Um homem célebre’.
O pior dos problemas, porém, me parece ser o quadro conceitual frágil. Não que Piza desconheça os termos e as categorias adequados para a análise histórica e literária, mas os emprega de modo dispersivo, de vez em quando equivocado, como por exemplo dizer que o Rio de 1839 era uma ‘cidade nascente’ (p. 49) – a então capital tinha 200 mil habitantes, a maior de todo o Brasil, a cidade do México tinha 170 mil, Buenos Aires contava 65 mil e São Paulo era uma vila de 12 mil! A própria Lisboa tinha 190 mil! Como seria nascente a cidade se ela, fundada em meados do século 16, fora capital da colônia desde 1763, sede administrativa e tudo o mais?
Para não terminar com a paciência do leitor, apenas mais um problema, que sintomatiza o panorama geral aqui apontado. Piza insiste, desde as primeiras páginas, em afirmar que Machado era mulato, aliás ‘mulato escuro’ (p. 12). O tema retorna aqui e ali, de vez em quando entremeado com uma leitura trivial do apadrinhamento e do favor na sociedade brasileira, de vez em quando misturado com algum outro equívoco, como o considerar que ‘escravos libertos que ironicamente ganhavam o nome de ‘pardos’ depois de alforriados’ (sic, p. 51). A páginas tantas, lembra-se que Nabuco, amigo de Machado, afirmou que o próprio Machado não se considerava negro. Tudo somado, trata-se de um daqueles mistérios que nada tem de misteriosos, porque se referem ao coração da vida brasileira, marcada pela mestiçagem, tema este que tanto ocupou tanta gente boa. Mas Piza parece ter tomado um partido empobrecedor neste particular, ao assumir a quase-negritude de Machado, talvez no intuito de fazer-lhe um elogio.
Quer dizer: estamos diante de um trabalho de fôlego, feito a sério e graficamente bem editado, mas de resultado problemático. Piza poderia talvez ter tomado mais cautelas nessa matéria. Seguiu de perto a mais recente biografia de Machado, a de Raimundo Magalhães Júnior (1981), o que foi um acerto; mas parece não ter nem digerido a fortuna crítica mais profunda, de tal maneira que pudesse ter composto uma linha interpretativa quem sabe inédita ou ao menos sólida, nem feito pesquisas materiais inovadoras, de tal forma que lhe fosse possível apresentar novidades factuais. Fica o resultado de uma visão panorâmica sobre Machado, mas com defeitos visíveis demais.
* Escritor, doutor em Letras, professor da UFRGS, autor de Quatro negros, entre outros livros
Íntegra da reportagem da revista Veja
Machado não merecia
Os muitos erros da nova biografia do escritor
Lançado no fim do ano passado pela Imprensa Oficial de São Paulo, Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro, do jornalista paulista Daniel Piza, deveria ser uma novidade auspiciosa nas livrarias. Afinal, a obra de Machado de Assis (1839-1908), o maior dos escritores brasileiros, tem sido objeto de muitos estudos críticos recentes, mas a última biografia do autor foi publicada em 1981 por Raimundo Magalhães Júnior. A leitura dos especialistas, contudo, demonstra que o livro está repleto de erros. Ele falha no requisito primordial de uma obra de referência: a informação confiável.
‘Tudo o que há de bom na biografia de Piza já se encontrava em Magalhães Júnior. O resto são erros factuais e ilações indevidas’, disse o crítico Wilson Martins a VEJA. Em sua coluna no Jornal do Brasil, Martins fez um breve inventário de equívocos do livro, que inclui aberrações históricas (por exemplo, a informação de que o brasileiro José Bonifácio era português, ou de que o padre Feijó foi tutor de dom Pedro II) e análises delirantes dos nomes próprios de personagens machadianos (Piza diz, por exemplo, que o Palha, de Quincas Borba, é ‘quase Pulha’). Antes do artigo de Martins, o escritor e professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Luís Augusto Fischer já havia apontado problemas semelhantes no jornal Zero Hora. O entrudo é transformado em festa de salão, e não de rua, enredos como o do conto O Alienista são resumidos de maneira equivocada e um personagem de Dom Casmurro, José Dias, o agregado que adora usar superlativos, é rebatizado como João.
Piza parece ter acreditado sobretudo nos próprios dotes críticos para compor Um Gênio Brasileiro – a narrativa da vida do escritor é entremeada com análises de suas principais obras. Um livro como esse, porém, não é somente um veículo para o biógrafo ventilar opiniões sobre o biografado. Ele deve ser uma fonte de dados confiáveis. O desprezo pela precisão – ou pela simples revisão de nomes, conceitos e datas – torna o livro imprestável. Como poderia dizer José (e jamais João) Dias, é um pecado gravíssimo.
Pisadas na bola
Alguns deslizes de Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro
• Comparando Bentinho, de Dom Casmurro, ao Otelo de Shakespeare, o biógrafo diz que o personagem de Machado de Assis ‘morreu e matou por ciúme’. Bentinho não mata nem morre no livro
• A biografia diz que dom João VI transformou o Brasil em vice-reino em 1808, quando o país já tinha esse status desde o século anterior
• O presidente Deodoro da Fonseca é chamado de ‘Marechal de Ferro’, apelido que na verdade pertence a seu sucessor, Floriano Peixoto
• O brasileiro José Bonifácio, político do império e ‘patriarca da Independência’, é identificado como um ‘intelectual português’.
Íntegra da nota da coluna de Daniel Piza sobre os erros de seu livro
ERRATA
Felizmente meu livro Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro (Imprensa Oficial) chegou à segunda edição. Nela foram corrigidos alguns lapsos lamentáveis que cometi entre as 400 páginas. Defini mal, por exemplo, o entrudo, o carnaval de origem portuguesa, que não era apenas em salões, mas também em ruas; escrevi que José Bonifácio, tema de ensaio meu em Questão de Gosto, era português (embora Portugal o tenha querido para si); e em duas vezes deixei escapar João Dias, em vez de José (como aparece nas outras), o personagem de Dom Casmurro. Agora, tomar esses erros – que não são de ignorância nem de má-fé, mas de desatenção – como argumento para desqualificar o livro todo, sem mencionar a contextualização histórica e as interpretações inéditas, é exemplo cabal da ‘inteligência brasileira’, do despeito academicista contra quem poupa os leitores de notas de rodapé e aridez verbal. Quanto ao jornalismo casca-grossa da seção ‘cultural’ da Veja, qual a novidade?