Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

L´intermédiaire avec le G. de SP

Estado e Folha de hoje ecoam a revelação do Wall Street Journal de que entre os empresários corruptores da Alstom e as autoridades paulistas a quem teriam subornado entre 1998 e 2003 havia um elo até então perdido: um certo Claudio Mendes, provavelmente um pseudônimo, a quem foram repassados pelo menos US$ 5 milhões para distribuir aos benfeitores da multinacional francesa.

O nome dele aparece num memorando da Alstom, de 23 de setembro de 1997, como “intermédiaire avec le G. de SP”. “G” obviamente é gouvernement.

Só que os leitores do Valor sabiam disso desde ontem. Não porque o jornal tivesse furado o WSJ – a maior publicação de economia e negócios do mundo –, mas porque lhe paga pelo direito de transcrever matérias da sua versão “Americas”.

Hoje, o Estado cozinha a matéria do WSJ sem lhe acrescentar fatos novos. Justiça se lhe faça, foi o primeiro órgão de mídia no Brasil a levantar a lebre das ligações mais do que suspeitas entre a multi e tucanos de bico largo em São Paulo.

Na edição de 30 de maio, informou que seis empresas sediadas em paraísos fiscais, duas delas controladas por brasileiros, foram usadas para repassar a políticos paulistas pelo menos R$ 13,5 milhões, entre 1998 e 2001.

Já a Folha, que precisou correr atrás do prejuízo – e teve a decência de citar em várias reportagens a primazia do concorrente – hoje dá a volta por cima.

Enriquece o material do WSJ com uma descoberta dos repórteres Mario Cesar Carvalho e José Ernesto Credencio: documento da própria Alstom, em poder de promotores suiços, menciona o acerto pelo qual, já em 1997, a empresa se comprometeu a pagar propina “no patamar” de 7,5%, ou R$8,25 milhões, por um contrato de R$ 110 milhões com a Eletropaulo.

O bakshish, como dizem os árabes, iria para “as finanças do partido”, “o tribunal de contas” [do Estado] e “a secretaria [estadual] de energia”.

Lembra a Folha que em 21 de outubro de 1997, data do documento, o partido que governava São Paulo era o PSDB, o secretário de Energia era David Zylbersztajn, “ex-genro do então presidente Fernando Henrique Cardoso”, e o presidente da Eletrobrás era Eduardo José Bernini.

Mas, até agora, não há nenhuma acusação contra qualquer deles. A única pessoa de carne e osso é o ex-secretário estadual “R.M.”, presumivelmente Robson Marinho, chefe da Casa Civil do governador Mario Covas entre janeiro de 1995 e outubro de 1997.

Nomeado conselheiro do Tribunal de Contas paulista por indicação de Covas, Marinho – apurou recentemente o Estado – foi ver a Copa de 1998, na França, com todas as despesas pagas por uma empresa ligada ao grupo Alstom. Ele confirma. Nega, porém, que tenha ajudado a intermediar negócios com a administração tucana.

Identificar “R.M” como Robson Marinho até que foi fácil. Mas quem será Claudio Mendes, o “misterioso intermediário” de que fala o Wall Street Journal?

Eis a matéria do WSJ, transcrita do Valor. É leitura de primeiríssima, especialmente para jornalistas:

“Promotores envolvidos numa investigação de abrangência mundial sobre supostas propinas da gigante francesa da engenharia Alstom SA já começaram a identificar uma rede financeira envolvendo um misterioso intermediário, que pode ter acertado pagamentos para políticos brasileiros em troca de contratos de obras públicas para a empresa.

Investigadores europeus dizem que entre 1998 e 2003 a Alstom usou um homem conhecido como Claudio Mendes – provavelmente um pseudônimo – como o principal canal para supostos pagamentos de propinas no Brasil.

Segundo os promotores, a Alstom transferiu centenas de milhões de dólares a intermediários como Mendes para ganhar contratos na América do Sul e Ásia, através de uma rede clandestina digna de um livro de espionagem.

A Alstom, uma grande fabricante de turbinas elétricas, trens de alta velocidade e vagões de metrô, nega ter feito qualquer coisa errada. Mas há muito em jogo para ela. Se os promotores conseguirem montar um caso contra a empresa, ela pode ser obrigada a pagar multas pesadas ou até ser banida de participar de licitações públicas em mercados de rápido crescimento, como o Brasil.

Até agora, a empresa tem se apresentado como vítima no caso. Mês passado, ela conseguiu incluir promotores franceses na investigação, uma manobra jurídica que pode dar-lhe acesso a certas evidências do caso.

Mas documentos apreendidos pelas autoridades e aos quais o Wall Street Journal teve acesso mostram que a rede empregada pela Alstom para pagar consultores independentes no Brasil era administrada por integrantes do alto escalão da empresa, em Paris. Promotores também dizem que o esquema, que transferia recursos através de empresas fantasma e contas em bancos suíços, servia para apagar os indícios de participação da Alstom no pagamento das propinas.

A investigação internacional começou na Suíça em 2004 e chegou à França. No início do mês, num indício de que a investigação francesa está ganhando corpo, promotores parisienses abriram uma investigação oficial sobre um ex-consultor da Alstom por suspeita de apropriação indébita.

Um porta-voz da Alstom não quis comentar. Um advogado da empresa disse que ela está cooperando totalmente com as autoridades. Ele disse que não pode comentar questões específicas da investigação porque não teve acesso a todos os documentos e ‘de qualquer maneira a investigação corre em segredo de justiça’.

A investigação mostra como as autoridades européias estão mais duras em relação a táticas empregadas há muito tempo por várias multinacionais para obter contratos governamentais, especialmente no mundo em desenvolvimento. Um dos principais concorrentes da Alstom, a Siemens AG, continua sendo investigada na Alemanha por envolvimento num suposto esquema bilionário de pagamento de subornos.

Nos dois casos, os investigadores acreditam que as empresas violaram até as próprias leis de suborno da Europa, relativamente brandas. Até uns dez anos atrás, muitos países europeus permitiam não só que as empresas pagassem ‘comissões’ a autoridades estrangeiras, como também as descontassem do imposto. A Alemanha proibiu a prática em 1999 e a França em 2000.

No Brasil, mercado crucial para Alstom, promotores investigam a empresa em relação a vários de 139 contratos obtidos no Estado de São Paulo, avaliados em cerca de US$ 4,6 bilhões segundo autoridades paulistas.

Investigadores europeus dizem que Mendes ou seus asseclas no Brasil receberam pelo menos US$ 5 milhões através de contas no exterior. Contudo, não há provas que indiquem se esse dinheiro chegou a políticos brasileiros ou que eles usaram sua influência para beneficiar a Alstom, dizem esses investigadores.

O aposentado José Geraldo Villas Boas, ex-presidente da Companhia Energética de São Paulo, foi um dos consultores que trabalharam para a Alstom no período em questão. Ele foi contratado para ajudar a empresa a ganhar um contrato de instalação de subestações elétricas para a Eletropaulo, atualmente subsidiária da americana AES Corp. Segundo documentos bancários aos quais o WSJ teve acesso, Villas Boas recebeu da Alstom, entre 1998 e 2001, 7,8 milhões de francos, na época US$ 1,4 milhão, através de uma conta na Suíça pertencente à Taltos Ltd., uma empresa que ele controlava na época.

Numa primeira entrevista por telefone ao WSJ, Villas Boas confirmou que fez trabalhos de consultoria para a Alstom, mas disse também que nunca tinha ouvido falar da Taltos. Mas, numa entrevista posterior, depois que a investigação sobre a empresa foi revelada, Villas Boas disse que a Taltos era uma firma de consultoria que ele criou para receber comissões por seu trabalho em vários projetos. Villas Boas disse que as contas e as empresas na Suíça eram necessárias para receber os pagamentos.

‘Se você está concorrendo por negócios, vai tentar de tudo para vencer. Os fundos estão lá para ser usados, então claro que foram usados. Todo mundo fez a mesma coisa. Tudo mundo fez isso’, diz Villas Boas.

Ele acrescentou que os contratos de consultoria com a Alstom muitas vezes eram ‘ficções’ criadas meramente ‘para realizar um pagamento’.

Pagamento para quem? Villas Boas diz que não lembra. ‘O quê, você quer que eu leve um tiro?’, acrescentou.

Investigadores europeus dizem que a suposta rede de propinas da Alstom no Brasil começou com um memorando redigido a mão, datado em 23 de setembro de 1997 e assinado por um executivo da Alstom em Paris que supervisionava o desenvolvimento de negócios no Brasil.

O memorando, endereçado a um gerente sênior de exportação em Paris, gerou um debate no alto escalão da Alstom sobre uma proposta para pagar a Mendes polpudas comissões por sua ajuda para obter apoio político a ofertas da empresa em licitações no Estado de São Paulo.

Num memorando posterior, Bernard Metz, executivo da Alstom em Paris, explicou que Mendes era íntimo do então governador Mário Covas e podia agilizar as coisas. Metz, já falecido, reproduziu a promessa de Mendes de que poderia obter o apoio do ‘partido político no poder’ do estado, na época o PSDB, do ‘gabinete do Tribunal de Contas’ e ‘da Secretaria de Energia’ em troca de uma comissão de 7,5% do valor do contrato, segundo o memorando.

Metz acrescentou que por causa do fato de que qualquer pagamento a Mendes ultrapassaria o limite então permitido pela lei francesa, o esquema precisaria da aprovação de Pierre Bilger, presidente da Alstom na época. Metz disse que essa parte deveria ser coordenada por Etienne Dé, que naquele período era chefe da Alstom International. ‘O procedimento está sendo executado’, afirmou Metz.

Bilger, que é aposentado e escreve um blog, não quis comentar sobre o suposto pagamento de comissões durante a sua época. ‘Minha regra é que nunca comento nada sobre a Alstom a não ser que a empresa me peça’, disse.

As tentativas de entrevistar Dé, que também se aposentou, foram malsucedidas.

As autoridades européias acreditam que foi Dé quem aprovou as propinas, com base nos documentos da Alstom, aos quais o Journal também teve acesso.

Logo depois de uma intensa troca de emails, no fim de 1997, a Alstom montou uma equipe para lidar com Mendes. A equipe contava com quatro empresários paulistas, um contador em Paris e um banqueiro em Zurique, todos ligados à Alstom através de contratos de consultoria. Esses acordos exigiam segredo total.

Vários faxes trocados por oficiais da Alstom sugerem que a empresa francesa usou os intermediários para realizar muitos pagamentos, descritos por um gerente numa mensagem de 1999 como ‘nossos acordos falsos’.

Num fax de 13 de novembro de 1998, o diretor de uma divisão da Alstom na França informou aos superiores que gostaria de transferir eletronicamente uma comissão de 4,86 milhões de francos, cerca de US$ 860.000 na época, para uma empresa do Panamá. O pagamento, disse, não era para ganhar um novo contrato, mas para ‘garantir que o trabalho prossiga e recebamos (de um cliente brasileiro não identificado) dentro do cronograma’.

O pagamento foi feito, mostram as provas.

A diretoria da Alstom fez de tudo para esconder a ligação com Mendes e seus contatos. Os memorandos de setembro e outubro de 1997 – e nove pastas com documentos que detalham transferências bancárias para vários caixa dois da Alstom para negócios no Brasil e outros países – foram enviados a um banqueiro de Zurique, que os escondeu na casa de uma secretária.

Auditores da KPMG Fides Peat na Suíça, junto com a Comissão Bancária Federal do país, descobriram os documentos em 2004 por causa de uma investigação diferente, depois que um banqueiro suíço da Alstom foi preso sob acusação de realizar lavagem de dinheiro para uma quadrilha sul-americana de traficantes. No total, os documentos mostram um fluxo de 20 milhões de euros (US$ 31,3 milhões) para a Alstom através de empresas fantasma e contas na Suíça e em Liechtenstein, segundo um relatório da KPMG ao qual o WSJ teve acesso.

Enquanto a investigação se desenrola, Mendes continua a ser um mistério. Os investigadores europeus não acreditam que o nome seja verdadeiro. Mas sua identidade e paradeiro continuam desconhecidos.”