Da presidente da ONG Nossa Senhora do Bom Parto, Judith Lupo, sobre o cancelamento de doações prometidas, depois das denúncias contra o padre Júlio Lancelotti:
“O mal se espalha muito rápido, é uma característica da informação na sociedade de massa.”
Perfeito. Mas seria de esperar que o mal se espalhasse um pouco mais devagar entre os profissionais da informação, presumivelmente os primeiros a saber dessa característica. Que nada! Vejam só.
Ontem, a Folha publicou que, “sem alarde”, o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, mandou desarquivar uma proposta de emenda constitucional que permite a reeleição ilimitada para prefeitos, governadores e o presidente da República.
A proposta do então deputado Inaldo Leitão [e não do ex-deputado, como se lê na Folha, porque ex-deputados não podem propôr coisa alguma], havia sido arquivada com outras 46 que morreram na praia, no final da legislatura anterior. É a praxe.
Também como de praxe, o deputado Fernando Ferro, do PT de Pernambuco, pediu o desarquivamento. “Eu sempre peço para desarquivar, senão vai para a lata do lixo”, explicou. [Senão, como se lê na Folha, quer dizer defeito. O certo, aqui, é se não, ou seja, do contrário.]
Uma vez solicitado, o desarquivamento “é tão rotineiro que quem faz é a Secretaria Geral da Mesa”, explicou por sua vez Chinaglia ao jornal. E o ato é chancelado burocraticamente com a sua asssinatura eletrônica.
Ele acusou a mídia e a oposição de envolvê-lo numa “conspiração do terceiro mandato” [do presidente Lula]. Disse que a chance de algum projeto nessa direção prosperar na Câmara é “zero”. E foi adiante: “Mais provável é que a gente acabe com a reeleição no Executivo do que se permitir a re-reeleição.”
Na página ao lado, a Folha dá em manchete: “Cúpula do governo rejeita 3° mandato”, com o sub-título “Ministros de Lula dizem que discussão é ‘inadequada’ e ‘prejudica o presidente; oposição usa CPMF para fazer ameaças”.
A reação do governo também foi destacada pelo Globo, na matéria “Reeleição, nem pensar’. E pelo Estado, na mais extensa de todas as reportagens a respeito: “Planalto inicia ofensiva contra o terceiro mandato”.
Participaram ontem da ofensiva os ministros da Fazenda, Guido Mantega; da Saúde, José Gomes Temporão; Paulo Bernardo, do Planejamento; e Luiz Dulci, da Secretaria Geral da Presidência. No Congresso, além do deputado Chinaglia, o presidente interino do Senado, Tião Viana, também do PT, o seu colega Eduardo Suplicy e o líder do governo na Casa, Romero Jucá, do PMDB. Cada um mais enfático do que o outro:
Dulci: “O presidente desautorizou expressamente qualquer iniciativa que vise a permitir a possibilidade de um terceiro mandato. [Com isso] ele está dizendo também que qualquer parlamentar que tomar iniciativa nesse sentido está prejudicando o país e o próprio presidente.”
Jucá: “Falar em terceiro mandato é um modelo ruim e uma cópia mal feita do Chávez.”
Viana: “Acho isso uma inconveniência, um ato de violência à ordem constitucional.”
Correndo por fora, até o desarquivador Fernando Ferro achou oportuno comentar: “A oposição, sem bandeira, fica colocando o debate. Isso pode virar uma lança contra eles próprios. Se formos fazer um plebiscito, imagino qual será o resultado.”
Na realidade, a bandeira da hora do DEM (ex-PFL) é sabotar as negociações entre a direção do PSDB e o governo para a prorrogação da CPMF.
O seu argumento ad terrorem, pois contra todas as evidências, é o de que, prorrogado o imposto do cheque, estariam abertas as portas para instituir uma segunda reeleição, como registra, solitariamente, a coluna Coisas da Política, no Globo de hoje.
Fiz questão de detalhar o noticiário do dia a propósito do factóide do terceiro mandato, a começar pelo falso alarme da Folha sobe o desarquivamento “sem alarde” de uma proposta em favor da reeleição irrestrita, para mostrar que também na imprensa – ou, quem sabe, principalmente na imprensa – se espalha muito rápido o mal de que fala a presidente da ONG do Bom Parto, citada na abertura deste texto.
Na contramão das mencionadas matérias dos três grandes jornais, a coluna Dora Kramer, no Estado de hoje, intitulada “Do ovo nasce a serpente”, sustenta que “confirmaram-se as piores suspeitas dos que já estavam desconfiados da resistência do partido em desocupar a máquina pública uma vez tendo chegado lá” – com Lula lá de novo em 2010, obviamente.
O artigo cita em defesa dos desconfiados a matéria conspiratória da Folha de ontem, reduzida aos seus verdadeiros termos na edição de hoje, sobre o desarquivamento. E pergunta, ironicamente:
“Agora, convenhamos, aplicando a lógica aos fatos: um assunto desses é retirado do arquivo, fica de stand by para o que der e vier e ninguém avisa a Fernando Ferro, um dos mais aguerridos governistas tanto do plenário quanto em CPIs, que aquilo contraria os interesses de Lula?”
É a teoria do “aí tem”. Pena que Sua Excelência, o Fato – como dizia Ulysses Guimarães, que a colunista costuma citar -, diga que aí não tem.
Melhor faria o comentariado político se, em vez de enfeitar castelos na areia construídos pelos políticos com segundas intenções, parasse para fazer o leitor pensar sobre os inconvenientes de uma idéia de Lula que, esta sim, leva chance de emplacar no futuro, se e quando os políticos se puserem a acabar com a reeleição para o Executivo. Exatamente o que o deputado Arlindo Chingalia considerou “mais provável” que a re-reeleição.
[Os políticos não gostam da reeleição porque a fila para o bandejão do poder leva quase sempre o dobro do tempo para andar.]
Lula defende mandatos de cinco anos, sem reeleição, para os seus sucessores. Se a idéia vingar, as eleições presidenciais se descolarão de todas as outras. Serão eleições solteiras, como se diz em politiquês.
Eleições solteiras – inexistentes, por sinal, nos países que adotaram o presidencialismo – são verdadeiros plebiscitos. Os vencedores, depois de campanhas em que os partidos são vistos pelo eleitor como meros figurantes, e olhe lá, se sentem os próprios reis da cocada preta.
Foi, corrupção à parte, o caso de Fernando Collor. Presidente imperial, ele desdenhou do sistema político-partidário e humilhou o Congresso. A arrogância, mais do que as traficâncias da República de Alagoas, custou-lhe o mandato.
P.S. Leitura de Finados
Hoje é o dia adequado para comentar a iniciativa da Folha de publicar necrológios à moda da Economist. Em cada edição da revista, a última página é ocupada pelo perfil de um “cadáver excelente”, como no nome daquele filme italiano.
Cadáveres excelentes podem ser, ou não, celebridades. Podem merecer, ou não, ser pranteados. Mas têm que ter uma história muito viva para se contar. E a jornalista que cuida dos finados da Economist conta essas histórias tão bem, mas tão bem, que muita gente começa a ler a revista pelo fim. [Eu sou um deles.]
Pois a Folha resolveu fazer o mesmo, embora em muito menos espaço – umas 50 linhas de coluna, ao lado das notas e anúncios fúnebres.
Prova de que tamanho não é documento, até agora o resultado tem sido um bônus para o leitor. É o caso do necrológio de hoje, um primor de redação, de autoria do free-lancer Willian Vieira. Trata de “José Correa, o maior devedor do BB”.
Com todo o respeito pelo falecido e por todos quantos têm no 2 de novembro o seu dia, divirtam-se:
“José Arlindo Passos Correa tinha uma vida pacata e uma bela casa em Votuporanga, interior de São Paulo, com a mulher e os dois filhos. Era um cidadão no mínimo perspicaz, dono de empresas e fazendas -mas que ficou conhecido mesmo em todo o país como o maior devedor de crédito agrícola da história do Banco do Brasil.
Quando uma revista publicou um perfil pouco elogioso sobre ele, em 1999, sua dívida com o banco era tida como superior a R$ 300 milhões -valor que hoje, atualizado, pode passar de R$ 500 milhões e que, somado a outras dívidas com o Fisco e outros bancos oficiais, pode chegar a R$ 1 bilhão. Que ele nunca pagou -julgava injustos os juros cobrados pelo banco e dizia precisar de mais crédito, de mais ‘oxigênio’ para sanar a dívida.
Tampouco foi punido pelos mais de 300 processos contra suas empresas na Justiça -Correa tinha tantos credores que uns tentam tomar dos outros algum naco dos bens do empresário.
Por isso é provável que o maior deles, o BB, nunca mais veja a cor do dinheiro devido, por ser o último na fila de espera. Se seus bens fossem vendidos, seria preciso pagar os impostos atrasados, depois as dívidas trabalhistas e, caso sobrasse alguma coisa, aí iria para o banco.
Cardíaco, Correa sentiu dores no peito na última terça e foi levado pela família para um hospital