A distância entre a imprensa de países como o Brasil e a dos Estados Unidos pode ser medida por metros das mais diversos calibres, mas poucos haverão de ser tão precisos como uma matéria que saiu terça-feira, 5, no Wall Street Journal – e que jamais sairá em algum periódico brasileiro, enquanto as redações, aqui, continuarem a ter escassa vida própria em relação aos seus controladores.
Como devem saber os leitores das páginas econômicas, o megaempresário da comunicação Rupert Murdoch – News of the World, Sun, Times, Sunday Times, Sky Television, na Inglaterra; New York Post, Fox Television, My Space e fatias da 20th Century Fox e da Direct TV, na América – ofereceu US$ 5 bilhões pela empresa Dow Jones, dona da agência noticiosa do mesmo nome e do maior jornal de negócios do mundo, o Wall Street Journal.
O WSJ é também um dos três únicos diários nacionais dos Estados Unidos, além do New York Times e do USA Today.
As negociações entre o barão de mídia australiano naturalizado americano e a família Bancroft, que detém o controle acionário da Dow – a qual, aliás, não estava à venda – se desenrolam em alguns dos mais caros escritórios de advocacia comercial do planeta, em Nova York.
A fama de Murdoch é justificadamente a pior possível. Quando se fala em tabloidização da imprensa, é nele que se pensa. O que o velho (76 anos) empresário considera jornalismo bate de frente com o que pensam do ofício onze em cada dez jornalistas sérios.
A fórmula desse notavelmente bem sucedido bucaneiro combina o mais desavergonhado sensacionalismo, mesmo para os padrões típicos da imprensa de esgoto – caso do tablóide londrino Sun, o mais lido jornal de língua inglesa, com 3 milhões de exemplares – com doses cavalares de direitismo, como se pode ver a todo momento na Fox News, o canal de notícias 24 horas que desbancou a CNN da liderança no setor, nos EUA. ‘Justo e equilibrado’, é como se define. É tudo menos isso.
Se a legislação permitisse e Murdoch resolvesse fazer por uma revista ou jornal brasileiro uma oferta daqueles que dificilmente os seus proprietários poderiam recusar, os jornalistas em vias de mudar de dono e os órgãos de representação profissional decerto produziriam o maior auê.
As vítimas só não poderiam imitar os seus colegas do Wall Street Journal, publicando no próprio jornal ameaçado de ir desta para pior uma reportagem – assinada – a respeito do candidato a chefão do pedaço.
Essa a matéria inimaginável no Brasil a que me referi no começo deste escrto. Com o antetítulo “Dando as cartas”, o título “Na carreira de Murdoch, mão sobre as notícias” e o sub “Seu estilo agressivo pode borrar fronteiras”, não é um manifesto, nem um panfleto, mas uma reportagem que busca ser informativa e objetiva, como as que deram tantos prêmios Pulitzer aos jornalistas da casa.
Alguns deles por reportagens investigativas que expuseram baixarias do governo Bush – que a página de editoriais do jornalão apóia com entusiasmo.
O artigo pega na veia do problema logo no terceiro parágrafo:
“Um exame detalhado do meio século de carreira de Mr. Murdoch como jornalista e empresários mostra que os seus jornais e outros canais de mídia tomaram decisões editoriais no campo da reportagem que promoveram os interesses do seu obeso conglomerado de mídia, a News Corporation. No processo, ele borrou a linha divisória que existe em muitas outras empresas de comunicação dos Estados Unidos entre o negócio e a notícia – destinada a impedir que os interesses econômicos e políticos dos proprietários influam no conteúdo informativo.”
E a seguir: “Em qualquer jornal, os donos tem voz na definição, em termos gerais, da linha editorial. Mr. Murdoch tem um longo histórico de ser incomumente agressivo, refletindo as suas raízes como um barão de imprensa à moda antiga. Desde os seus primeiros dias, como alguns outros proprietários de jornais do século passado, ele conduziu os seus empreendimentos com as suas mãos postas diretamente sobre o produto diário, azucrinandso repórteres e editores com sugestões e críticas.”
A matéria descreve os melhores (?) momentos dessa carreira, mas sempre com poucos adjetivos ou advérbios, além de trazer entrevistas críticas, ou elogiosas, ao comportamento do magnata manda-chuva. E não esquece de informar que o seu conglomerado faturou nos doze meses encerrados em março último US$ 28 bilhões, dando um lucro líquido de aproximadamente US$ 3,4 bi. Vulgaridade vende.
Os autores tiveram o zelo profissional de entrevistar o ogro em seu escritório em Nova York. Dele ouviram que “quando um jornal [seu] começa a ir mal e entrar pelo cano, a responsabilidade é minha. Os acionistas nunca telefonam para o editor, telefonam para mim’. Uma ou duas vezes, acrescentou, ‘isso resultou na decisão na muito difícil porém necessária de substituir editores”.
Em suma, uma peça exemplar de jornalismo independente que cutucou com vara curta o figurão que, se as coisas saírem como pretende, terá o poder de “substituir editores” e sabe-se lá quem ou o que mais no grande jornal que ambiciona acrescentar ao seu império.
A reportagem pode ser lida no original em http://online.wsj.com/article/SB118100557923424501-search.html?KEYWORDS=
murdoch+hand&COLLECTION=wsjie/6month.
Foi reproduzida, na mesma terça-feira em que saiu, na página do Wall Street Journal Americas que o Estado publica diariamente. Mas a edição online do jornal não dá acesso ao texto.
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