Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mandela não merecia o show de políticos em busca de holofotes

O enterro de Nelson Mandela foi transformado num show cujos objetivos ainda não estão suficientemente claros, mas que mostraram a volúpia dos políticos e meios de comunicação em buscar visibilidade e a conversão de qualquer evento num espetáculo midiático.

A BBC inglesa foi alvo de severas críticas por parte de muitos de seus espectadores por conta da cobertura avassaladora, em que alguns de seus apresentadores tentaram induzir entrevistados a comparar o líder africano a Jesus Cristo. Simon Jenkins, veterano jornalista britânico, engrossou o coro dos críticos à cobertura do velório de Mandela afirmando que o evento foi “sequestrado por governantes estrangeiros e celebridades do showbiz”.

A montagem do espetáculo em torno do fim de vida do homem que os sul-africanos chamam de Madiba (pai) começou bem antes do anúncio de sua morte. Desde o final de 2011, quando a saúde de Mandela passou a dar sinais de debilidade, as principais organizações jornalísticas do mundo deflagraram uma verdadeira guerra em busca de posições privilegiadas no futuro velório.

Foi o início de um vale-tudo em que empresas como a Reuters e a Associated Press brigavam pelo posicionamento de câmeras na frente do líder africano, quase dois anos antes de ele morrer. A obsessão com a audiência atropelou a ética e principalmente o respeito pela imagem de um homem que passou a maior parte de sua vida na clandestinidade e na prisão. Houve até denúncias de espionagem telefônica por parte de redes de TV interessadas no impacto de um furo mundial.

Não há dúvidas que Mandela é um personagem ímpar na política mundial, mas a espetacularização do seu velório contagiou até chefes de Estado que posaram para selfies (autofotografias com telefones celulares) como se fossem tietes num show de rock. O ex-presidente sul-africano é o mais novo personagem a ser transformado pela mídia em ícone da cultura contemporânea, numa estratégia cujo alcance parece ser bem mais amplo do que o mero culto de uma personalidade.

A imprensa montou o cenário do espetáculo para que os protagonistas desenvolvam as piruetas mercadológicas adequadas às suas estratégias políticas e corporativas. A BBC inglesa dedicou mais tempo para registrar a presença de celebridades – como a modelo Naomi Campbell, a atriz Charlize Theron e o cantor Bono Vox – do que aos integrantes da cúpula do governo sul-africano sobre quem recai agora a responsabilidade de gerenciar a memória de Mandela.

Todo esse endeusamento da figura de “Madiba” talvez seja um tardio mea culpa pelo papel desempenhado pela imprensa na cobertura dos dramáticos eventos registrados no início da década de 1980, quando Mandela e seu partido, o Congresso Nacional Africano, eram tão demonizados pelos jornais europeus e norte-americanos quanto Osama Bin Laden o foi mais de duas décadas depois.

Mas é principalmente uma prova de como o sistema midiático mundial está levando a limites inimagináveis a transformação da notícia em espetáculo. As causas e consequências acabam soterradas na avalancha de imagens espetaculares, fotografias inusitadas e personalidades atrás de holofotes. A informação fica soterrada pelo consumo.