O leitor que freqüenta com um mínimo de regularidade este cantinho da internet terá constatado, com justo espanto, e talvez com irritação, ou tristeza, ou temor, que os dois tópicos “Debate busca raízes da violência” [parte 1; parte 2] são quilométricos. Tipo do texto que eu mesmo só leio depois de imprimir em papel.
Embora ofereçam abundantes entretítulos para facilitar sua “plotagem”, provocam uma compreensível vontade de não voltar jamais àqueles endereços eletrônicos.
Mas é uma pena. Trata-se de um repositório de conceitos esclarecedores que ajudam a ler o noticiário corrente.
É claro que não vou sugerir ao leitor que retorne ao local do crime cada vez que uma notícia lhe sugerir conexão com o debate. Faço-o eu mesmo e o ofereço como subproduto da publicação original.
Vejamos algo que está nos jornais de hoje (24/1). O Globo: “Tráfico leva major e 5 PMs à prisão. Suspeito de envolvimento com o tráfico, o major Carlos Alberto Cardoso Fragoso, ex-comandante do Getam da PM, teve a prisão decretada, juntamente com outros policiais militares.”
O jornal, que no título já julgou um suspeito (“Tráfico leva”; o que levou à prisão não foi a prática do tráfico, mas uma acusação de envolvimento com traficantes), diz que o major foi denunciado por um cabo. (No jornal O Dia, o major não é nem suspeito, já foi julgado: “Major fazia operações para dar segurança ao tráfico”.)
A Folha tem mais informações e é, portanto, mais prudente e mais precisa no título: “Preso ex-chefe de grupo de elite da PM do RJ. Suspeito de chefiar esquema de extorsão a traficante, Fragoso comandava, até a semana passada, o Grupamento Especial Tático Móvel”.
A base da acusação é apresentada assim: “Segundo a PF, a Fragoso foi apontado por um subordinado já preso e apareceu em gravações telefônicas como o chefe do esquema de proteção a criminosos [da favela] do Muquiço”.
Esse “apareceu em gravações telefônicas” ficou confuso. Parece que é o major Fragoso ao telefone, mas não é.
A Folha ouviu a mulher do major, que o defendeu veementemente (já voltamos a isso). E ouviu também “um oficial PM do alto escalão do governo, que já comandou Fragoso”. Esse oficial se disse supreso com a prisão do major, que descreveu como “íntegro e bom profissional”.
Temos aqui algo que se relaciona com dois aspectos do debate realizado por iniciativa do Observatório no dia 5 de janeiro.
Primeiro, que o bem e o mal praticados dentro da Polícia são conhecidos pela Polícia.
Trecho da fala de Jorge da Silva na segunda parte do debate:
“Novamente corrupção. Um exemplo de minha experiência. Vocês pensam que toda vez que se encontra um PM ou um policial civil envolvido com drogas, com seqüestro, extorsão, é novidade dentro da polícia? Não, todo mundo sabe quem são os bandidos da Polícia, os ladrões da Polícia, os riquinhos, esses que têm carrões.
Roberto Kant de Lima – Todo mundo sabe quem é quem.
J.S. – Sabe. Só que é aquela história da novela [Roque Santeiro]: ´Não me digue, não me digue´. Quer dizer, um comandante não tem responsabilidade. Quando acontece alguma coisa, eles dizem que vão apurar”.
Trechos da fala de Kelaine, mulher do major Fragoso, à Folha de hoje.
Na reportagem principal:
“Ele não negocia com bandido, não é bandido. Pode perguntar a qualquer oficial na PM, até ao comandante. Não há indenização que pague meu marido ser humilhado na frente da tropa por algo que não fez”.
Na coordenada:
“O que tem de bandido declarado na PM e pegam um cara honesto, que trabalha e não leva R$ 1 de ninguém?”
Quer dizer: todo mundo sabe quem é quem.
Segundo aspecto, reforçado pela possibilidade de que o major não seja culpado: denúncias feitas com base em acusações nebulosas.
Um repórter do Rio informa que a pessoa ouvida na gravação telefônica feita pela Polícia Federal não é o major Fragoso. O Dia diz outra coisa: “Gravações de telefonemas com autorização da Justiça mostram PMs negociando com bandidos armas e drogas. Na época das primeiras prisões [dezembro de 2006], o superintendente da PF no Rio, Delci Teixeira, destacou conversa em que um dos PMs negociava farda. Ontem foi divulgado que esse policial é o major”. O Globo sai pela tangente: “Durante investigações no ano passado, a Polícia Federal descobriu que ´metade da merenda era para um major´. A ´merenda´ em questão é a propina paga pelos traficantes do Muquiço ao policial”.
Volte-se ao debate publicado aqui. Novamente a fala é de Jorge da Silva:
“Esse negócio do Álvaro Lins, agora [ex-chefe da Polícia Civil, deputado estadual eleito, acusado nos últimos dias de 2006, pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, de ter conexões com a chamada “máfia do videopôquer”]. Não quero entrar no mérito sobre se ele tem ou não culpa, mas foi um dossiê. Prepararam um dossiê, mandaram não sei de onde e o dossiê foi parar em algum lugar. Aquilo não foi feito pelo Ministério Público, foi um dossiê. Pessoas que estão disputando o domínio da informação…”
E, adiante:
“Um processo kafkiano. De repente, nós estamos aqui conversando, tem um gravador, tem alguém investigando todos nós, ou um de nós. E você não sabe. Tem um processo desse tamanho e você não fez nada. Como é que vai ser?”
Como é que vai ser? Esperemos o noticiário de amanhã sobre o caso do major.
P.S. – Quanto a Álvaro Lins, a Justiça não aceitou a denúncia feita pela Polícia Federal. E cresce entre jornalistas do Rio a convicção de que não há no processo elementos que possam levar a uma condenação do deputado eleito. Ele ficaria, mas isso já é uma avaliação política, como um ‘lame duck‘, um político prejudicado pela gravidade da denúncia e sua repercussão na mídia. O que poderá levar Álvaro Lins a algum tipo de condenação são crimes eleitorais. Sua campanha foi ostensivamente milionária. De concreto, aponta-se a utilização de carro da Polícia na campanha.