Está em todos os jornais. Numa decisão inédita, o Conselho Nacional do Ministério Público censurou e suspendeu por 45 dias os procuradores regionais da República Luiz Francisco de Souza e Guilherme Schelb.
Entre 2000 e 2001 eles fizeram o diabo para provar a participação do então secretário presidencial Eduardo Jorge Caldas Pereira no monumental esquema de desvio de recursos para a construção da nova sede do Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo, chefiado pelo juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto, o afamado Lalau.
Nunca nada foi provado contra Eduardo Jorge, que disparou rajadas de processos contra os seus acusadores. A decisão do conselho dos procuradores resulta de uma dessas ações.
A ofensiva politicamente motivada contra EJ, como se tornou conhecido, para desestabilizar o governo Fernando Henrique incluiu um artigo do então presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, na edição de 31 de agosto de 2000 da Folha de S.Paulo.
Lula acusou FHC de ter abafado vários escândalos de corrupção, dos quais o mais notório seria o que ‘envolve relações do seu braço direito, Eduardo Jorge com [o então] foragido número 1 do Brasil, o juiz Nicolau dos Santos Neto’.
E mais: ‘A cada dia surgem fatos novos e novas revelações que desmentem as declarações de EJ e demonstram que ainda há muito a investigar e a descobrir.’
Muito de fato se investigou – e nada se descobriu. Mas Lula voltou à Folha.
Numa entrevista publicada em 29 de junho de 2002, ele confessou [o verbo é seu] que estava ‘de saco cheio do denuncismo neste país’. [Salvo engano, foi o jornalista Alberto Dines quem criou a expressão, com as variantes ‘jornalismo denuncista’ e ‘jornalismo fiteiro’.]
Perguntado se o PT tinha parte da culpa pelo denuncismo, Lula respondeu:
‘É bem possível que tenha. Só é possível denunciar alguém com prova. Acusou, prova. O Ministério Público presta um serviço ultra-relevante. Mas acho grave que muitas vezes dê mais atenção à imprensa do que ao conteúdo do processo. Aí começa a deformação.’
Só que o mecanismo da deformação não funcionava bem assim. No caso concreto de Eduardo Jorge, os procuradores – em ‘off’, naturalmente – plantavam denúncias contra ele em jornais como a Folha e nas semanais. E se valiam das reportagens com as acusações anônimas para iniciar procedimentos contra o acusado.
Isso – a parceria cúmplice da mídia com uma sistemática operação de linchamento moral de uma autoridade – nenhum jornal se lembrou de dar na notícia sobre a pena imposta aos procuradores federais pelo próprio conselho nacional do setor.
Para não deixar de graça o silêncio da imprensa e para o leitor fazer o seu próprio julgamento, eis alguns trechos do artigo ‘Denuncismo e apuração negligente’, do jornalista Rui Nogueira, hoje na sucursal do Estado de S.Paulo em Brasília. Foi publicado em 7 de agosto de 2002 no Observatório da Imprensa. A íntegra está aqui.
‘Chamados à objetividade por dever de profissão, impressiona como os jornalistas conseguem manipular o debate sobre o caso Eduardo Jorge e desviá-lo para um foco onde o centro da discussão nunca é o erro do jornalista e do jornal.
Esta é a profissão em que as fontes oferecem as informações, mesmo quando dão a cara ao tapa (on), e o jornalista fatura os louros sozinho. Os erros – ah, os erros – são debitados, direta ou indiretamente, na conta de uma fonte que não se mostrou confiável, nos tropeços naturais (!) do exercício da profissão. Seja lá o que isso for. E estamos a braços com essa mesmice ao tratar do caso Eduardo Jorge.
Execrar primeiro e perguntar depois. Espírito de manada. O procurador Luiz Francisco de fonte primária da informação. Tudo isso é muito grave, mas depois de 24 anos nas redações criei a firme convicção de que isso tudo é efeito de um mal maior. A saber: um relacionamento pusilânime com o leitor, fruto de uma competição predatória da indústria de notícias.
Indústria e jornalistas estabeleceram como parâmetro de apuração e excelência informativa a competição pelo furo, a qualquer preço – o mais caro de todos é o de publicar notícias, saiba o leitor, sem apuração. Vou repetir: sem apuração.
O que eu vi em Brasília, como secretário de redação da Folha de S.Paulo, foi isso: nunca houve apuração de nada. Ninguém me contou, eu vi, eu sei.
Eu vi, um dia, quando o caso EJ já estava no ventilador da mídia havia mais de mês, uma curiosa tabela do procurador Luiz Francisco na mão de um jornalista – um ‘setorista’ de Luiz Francisco.
A tabela tinha quatro colunas: a primeira dava título aos casos em que supostamente Eduardo Jorge estaria envolvido; na segunda, uma pequena descrição do caso, não mais que uma ou duas linhas impressas; na terceira, o nome do veículo de comunicação e do jornalista a quem o procurador entregou o caso – para ajudar (!) na investigação; na quarta, o que o jornalista havia conseguido investigar.
A quarta e última coluna da tabela estava vazia. E continua. Nenhum jornalista conseguira uma mísera informação. Mas todos os jornalistas publicaram, às vezes em matérias de página inteira, as suspeitas descritas em sinopses de pouco mais de duas linhas.
E batizaram os casos, na mídia, com o mesmo nome proposto pelo procurador. Assim nasceram o Caso EJ/Casa em Boca Raton, o Caso EJ/Contrato Banco do Brasil, o Caso EJ/uma ou duas dezenas de casos.
Os jornais sabiam da fragilidade de tudo, absolutamente tudo. Publicaram tudo sob o argumento de que se eles não dessem, outros dariam. Essa competição é mortal.‘
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