Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia falha no ‘samba do crioulo doido’

Decerto muito poucos leitores irão incluir entre as atividades do sabadão uma leitura minuciosa do que os jornais do dia dão sobre o ato da Justiça Eleitoral de manter a verticalização nas eleições deste ano.


Mas isso não é motivo para a imprensa deixar de destacar um aspecto essencial do problema – nem para deixar de mostrar a incongruência entre essa decisão e outra, tomada pelo mesmo tribunal, na mesma ocasião. Jornalismo que se preze também é saber ligar os pontos, para que os fatos façam sentido na cabeça do leitor.


Para quem estava de férias em Marte, verticalização é a regra que federaliza as alianças eleitorais partidárias. Os partidos que se coligarem em torno de determinado candidato presidencial não podem participar de coligações diferentes em torno de candidatos a governador. Exemplo: o PL não pode apoiar Lula para o Planalto e apoiar um tucano no Estado xis ou um pefelista no Estado ipsilon.


Essa norma polêmica foi instituída por ato solitário do então presidente do TSE, o não menos polêmico Nelson Jobim, hoje na presidência do Supremo. Ele o fez em resposta a uma consulta, já que não havia nenhuma lei ou decisão judicial específica a respeito.


Agora, em resposta a outra consulta, o TSE resolveu por 5 votos a 2 que a verticalização – recém-derrubada por emenda constitucional do Congresso, mas propositadamente ainda não promulgada – só pode desaparecer na eleição de 2010. Argumento: as leis que regem uma eleição devem estar em vigor no mínimo um ano antes de sua realização.


Preocupada em destacar o óbvio, o ‘samba do crioulo doido’, como diz o Globo, em que essa decisão mergulhou os políticos – que já tinham feito os seus cálculos de conveniência eleitoral com base na emenda aprovada por mais de 3/5 dos deputados e senadores, em duas votações, como exigido – e em prever em cima da bucha quem ganha e quem perde com a nova e confusa situação, a imprensa não chamou a atenção para um fato singelo:


O ministro Jobim instituiu a verticalização no ano eleitoral de 2002. E ela passou a valer imediatamente – e não só a partir de 2006. Já ouviram falar em dois pesos e duas medidas? Pois é.


Os jornais fizeram a coisa certa, por outro lado, ao destacar o rolo que o ato do TSE vai dar nas relações entre o Legislativo e o Judiciário. Já na primeira página do Estado, ao lado do líder tucano no Senado Arthur Virgílio, favorável à decisão, o presidente da Câmara, Aldo Rebelo, bateu pesado:


‘O TSE não é tribunal constitucional. Extrapolou de suas atribuições e responsabilidades. Vamos ao Supremo para fazer valer a regra já nesta eleição.’


[Segundo as previsões, o STF deve bancar a temerária decisão do TSE, mas esse é outro capítulo da melancólica história da aparente impossibilidade de se ter no Brasil regras eleitorais claras, coerentes – e estáveis.]


Mas, só o Globo e o Jornal do Brasil puxaram para a primeira página outra decisão – contraditória com a primeira, como se verá – do tribunal eleitoral. Globo: ‘Candidatos ficam livres de prestar contas na internet’. JB:’Nada muda nos gastos de campanha’.


[A rigor, muda uma coisa: nenhum real pode entrar ou sair dos comitês eleitorais a não ser em cheque. Até agora, dinheiro vivo podia entrar ou sair desde que não passasse de R$ 100. Ou seja, se o motorista de um comitê parar no boteco para um sanduíche de mortadela e um refrigerante com recursos da campanha terá de pagar em cheque. Brasil-sil-sil!]


De volta ao principal. Depois da escandalha do mensalão/caixa 2, levou-se à Justiça Eleitoral a santa proposta de obrigar os partidos a divulgar suas contas (doações recebidas e despesas efetuadas) pela internet a cada 15 dias, para o acompanhamento do distinto público votante.


Nada feito, sentenciou o TSE. Argumento: medida desse tipo só poderia vir por lei federal. ‘Não podemos criar normas jurídicas’, alegou o ministro Carlos Caputo Bastos, relator das decisões. ‘O tribunal não institui normas; apenas regulamenta normas aprovadas pelo Congresso’ [o que de fato não aconteceu no caso de pretendida inovação pró-transparência].


De novo é o caso de perguntar, retoricamente: já ouviram falar em dois pesos e duas medidas?


A verticalização foi instituída em 2002 – e para valer já em 2002 – pelo presidente do TSE, em resposta a uma consulta. Acaba de ser mantida pelo mesmo TSE para 2006, em resposta a outra consulta. Isso é regulamentar normas ou criar normas?


Em 2002 a vontade do ministro Jobim virou lei. Em 2006 o TSE regulamentou uma norma legislativa antes até de ela ser promulgada. Para um leigo como eu, a corte eleitoral não poderia se manifestar sobre uma lei que ainda não entrou em vigor. E, quando entrasse, a sua aplicação, já agora, só poderia ser contestada junto ao Supremo.


E, para um leigo como eu – e, imagino para tantos outros brasileiros da mesma condição – fica a impressão de que os juízes não quiseram adotar os balanços quinzenais na internet porque… não quiseram.


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