Pessoas muitas vezes acreditam no que lhes convém. Ou dizem o que convém às suas convicções. Mas algumas pessoas são menos livres do que outras para fazê-lo. Intelectuais públicos e jornalistas, por exemplo, se forem fiéis à ética de seus respectivos ofícios – que consistem, cada qual a seu modo, em lidar com a verdade – não emprestarão os seus nomes e o seu eventual prestígio para que mereçam fé as suas crenças, por manifestamente falsas que sejam.
Mas foi o que acabou de fazer a filósofa – e “intelectual orgânica” do PT – Marilena Chaui.
Convidada a falar no sindicato dos metalúrgicos do ABC sobre “Ética na Política” – ou, mais exatamente, sobre “por que a direita quer criar, a imprensa alimenta e você deve entender a crise”, como dizia o jornal do sindicato, citado na Folha de hoje pelo atento repórter Ricardo Melo – afirmou algo que há de ter feito chacoalhar no seu túmulo os ossos do pensador que ela mais parece admirar e de cuja obra é considerada especialista no Brasil, Spinoza.
Benedictus de Spinoza, seu nome oficial, ou Baruch Spinoza, em hebraico, como o haviam batizado seus pais judeus [as palavras são sinônimas], nasceu em Amsterdam, Holanda, em 1632. Não nasceu em Portugal, nem o seu sobrenome é Espinhosa, porque os seus ascendentes dalí fugiram, tangidos pelas perseguições antijudaicas da Santa Inquisição e para escapar aos horrores do seu Tribunal do Santo Ofício.
Pois bem: a uma pergunta da platéia, no sindicato berço do PT, a spinozóloga Chaui não teve dúvidas em afirmar que a mídia brasileira é “pior” do que a Igreja Católica nos tempos inquisitoriais.
Eis o aberrante silogismo da professora: a Inquisição “operava pela produção visível, direta e clara do medo”; a mídia “opera não só por meio da destruição de pessoas, opera pela acusação sem provas”. Logo, ela é mais nefasta do que o medonho braço do catolicismo que torturou e queimou dezenas, se não centenas de milhares de pessoas, na Europa, América Espanhola e Brasil.
E que dizer da sugestão da doutora de que a mídia brasileira sim, mas a Inquisição não operava “pela acusação sem provas”?!
Nos bons tempos, quando a estrela petista reluzia e a estrela do petismo na Academia ainda não parecia ter mandado às favas os seus presumíveis escrúpulos de consciência, na guerra contra os inimigos reais ou imaginários de seu partido, ai do aluno dela que dissesse uma barbaridade dessas.
Também pode ser confortador para a militante filósofa – não confundir com filósofa militante – acreditar que a crise que tirou o PT do eixo e sobe, passo a passo, a rampa do Planalto foi o produto da ação individual de um fabricante de dossiês, conforme reportagem da Caros Amigos, “para derrubar o Lula, porque ele não gostou do Lula”, como ela explicou aos metalúrgicos que a ouviam.
Já escrevi outras vezes que todos temos direito às nossas próprias opiniões, mas não aos nossos próprios fatos [a frase, por sinal, não é minha]. E, a menos que se creia na sempre mirabolante teoria conspiracional da história, os fatos da crise são que ela nasceu de uma arapongagem de um prestador de serviços que, julgando-se prejudicado pelo funcionário dos Correios Maurício Marinho, fez gravar e divulgar a cena em que este aparece embolsando R$ 3 mil. Marinho deu uma entrevista dizendo que o capo das maracutaias na estatal era Roberto Jefferson. O deputado, para se vingar dessa e de outras desfeitas que diria ter sofrido, acusou o PT de pagar mensalão a políticos.
A história está cheia de falsos pretextos para ações, ou reações políticas. Em 1933, os nazistas mandaram pôr fogo no Reichstag [o parlamento alemão] e puseram a culpa nos comunistas, para implantar a ditadura de Hitler. Em 1937, militares brasileiros de extrema-direita forjaram o Plano Cohen, uma imaginária conspiração contra o governo, que deu a Getúlio Vargas o motivo para implantar o Estado Novo.
Agora, para defender o indefensável e dar a volta por cima, petistas e seus amigos invertem o procedimento: se saem com a sua conspiração particular que parece excluir até os “erros” que os próprios ex-dirigentes do partido reconheceram. Foi tudo “para derrubar o Lula, porque ele [o fazedor de dossiês] não gostou do Lula”.
Em tempo: a obra, publicada em 1677, que colocou Spinoza no panteão da história da filosofia e que a professora Marilena Chaui estudou talvez como ninguém por aqui se chama simplesmente “Ética”.
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