Desta vez, a jornalista Renata Lo Prete fez ao deputado Roberto Jefferson a pergunta que ficou faltando na outra entrevista (ver “Os nomes, cadê os nomes?”, de 6 de junho).
Já na quarta das 22 perguntas do pingue-pongue por telefone que está na Folha de hoje (duas a menos do que na anterior, cara a cara), Renata dispara: “O senhor poderia citar nomes de deputados que recebiam essa remuneração mensal?”.
Ele não citou. Deu uma resposta que – sem ter sido essa, aparentemente, a sua intenção – pegou no nervo da misérias da cobertura política na imprensa brasileira. Tratarei disso adiante.
De qualquer forma, por que não provocá-lo em seguida com outra pergunta de bate-pronto: “O senhor poderia citar nomes de deputados (do PL e PP) que não recebiam essa remuneração mensal?”
O interesse, no caso, não está tanto no que o escoladíssimo Jefferson teria a responder. Mas na questão que, afinal, se sobrepõe a qualquer outra: a verossimilhança mesma da denúncia. (Que exigiria ainda outra pergunta que a entrevistadora ficou devendo; mais sobre isso também adiante.)
Passo a passo, então. Um. O deputado disse na primeira entrevista que o PT pagava uma mesada de R$ 30 mil aos deputados daquelas siglas da base aliada. Não está claro quando começaram os pagamentos, mas, segundo ele, cessaram depois que pôs o presidente a par do assunto, no começo do ano (e ele teria reagido com o misto de surpresa e mágoa de quem ouve alguém dizer “olha ali a tua mulher com outro homem”).
Jefferson explica todos os dissabores que a base governista na Câmara tem causado ao governo ao fato de a fonte ter secado. “Estamos assistindo a uma crise de abstinência”, disse, no que terá sido uma boa sacada se a premissa for verdadeira.
Hipóteses caridosas
Segundo passo. Na entrevista publicada hoje, ele diz que o dinheiro, obtido de “operações com empresas do governo e com empresas privadas”, chegava a Brasília em malas. A grana era distribuída por um publicitário de Belo Horizonte, Marcos Valério, “que trabalha junto com o (tesoureiro do PT) Delúbio” e pelo deputado José Janene, do PP paranaense. Não ficou claro se Valério passava a bolada a Janene e este a repassava aos destinatários finais, ou se trabalhavam em paralelo. Mas isso é detalhe.
Terceiro passo. Vamos imaginar, numa hipótese caridosa a mais não poder – sempre supondo que Jefferson diz a verdade – que o mensalão tenha começado não antes de 2004 e terminado em março último, o mês em que, segundo o governo, o deputado teria falado do assunto “genericamente” a Lula. Durou, então, para simplificar 12 meses. (A contar da posse do Congresso eleito em 2002, daria 25.)
Quarto passo. Vamos imaginar, em outra hipótese caridosa, que nem todos os atuais 54 deputados do PL e os também 54 do PP (números da Folha de hoje) tenham sido subornados. Mas apenas aqueles que o governo aliciou de outros partidos, matriculando-os nessas duas legendas. De fevereiro de 2003 a hoje, 26 nobres parlamentares se tornaram liberais desde criancinha e 13 outros, pepistas de berço.
Quinto passo. Isso significa que, durante 12 meses, chovesse ou fizesse sol, 39 deputados recebiam mesada de 30 mil dinheiros. Ou seja, todo santo mês era preciso rodar uma folha de pagamento de R$ 1,170 milhão – o que é perfeitamente plausível, quando se sabe como funciona, entre o Estado e o Capital, o que nos bons tempos se chamava contubérnio espúrio.
Sexto e último passo. Você já parou para pensar na logística da paga do bakshish, em dinheiro vivo? Em apenas um ano, seriam 468 operações clandestinas.
Pense nos riscos de descarrilamento do trem pagador: as malas que tinham de passar pelos detectores dos aeroportos de origem (Jefferson: “esse dinheiro, pelo que sei, chega a Brasília em malas”); para maximizar a produtividade do procedimento, os mensalistas tinham que ser reunidos para a entrega da bufunfa (já pensou 50 políticos chegando na mesma hora a um restaurante ou hotel ou outro lugar do gênero), a menos que o delivery fosse personalizado, no gabinete ou no apê de cada um. Haja know-how.
Outras possibilidades, que decerto existem, não me ocorrem por falta de expertise. Mas o que apenas estas já me levam a pensar é que – mesmo nessa escala e duração modestas (49 deputados e não 108, 12 meses e não 25) – a operação é implausível, pelos tremendos riscos envolvidos para pagadores e recebedores).
O que não quer dizer de modo algum que aí não tenha. O caso dos dois tucanos de Goiás, relatado a Lula em maio de 2004, pelo governador Marconi Perillo, segundo contou sem ser contestado, não deixam dúvidas a respeito. Um deles (na realidade, uma) revelou a um correligionário ter ouvido de um deputado do PL goiano que receberia R$ 1 milhão nas chaves e R$ 40 mil por mês se trocasse de ninho e virasse a casaca.
Ensopado de letrinhas
O que não parece verdadeiro, em primeiro lugar por não ser simples fazê-lo, é que dezenas e dezenas de políticos – entre eles figuras carimbadas da política e da administração pública no país — recebessem suborno mês sim, o outro também.
“O senhor, pelo que sabe, poderia descrever como os operadores do mensalão faziam para pagar tanto dinheiro a tantas pessoas durante tanto tempo, sempre às escondidas?”
Essa foi uma das duas perguntas que ficaram faltando na segunda entrevista – a qual, é hora de dizer, tem um defeito estrutural: parece um ensopado de letrinhas em que se misturam perguntas e respostas sobre mesadas, compra de passes de políticos mediante pagamento único, arranjos para financiamento de campanhas, barganhas para a distribuição de verbas e cargos.
Ai do leitor menos familiarizado com a rotina do toma-lá-dá-cá. Porque algumas dessas coisas são criminosas por qualquer ângulo que se olhe; outras fazem parte da política como a conhecemos, ofendem a ética, mas não constituem necessariamente delitos.
A segunda pergunta da qual é o caso de dizer que não quer calar tem nome e sobrenome: Waldomiro Diniz. Se a história do mensalão é verdadeira, é improvável, para não dizer impossível, que ela se passasse em um planeta a anos-luz daquele habitado pelo sub-chefe para Assuntos Parlamentares do Gabinete Civil da Presidência da República Federativa do Brasil. Pelo menos physique de rôle para o papel ele tenha, como todos vimos no vídeo gravado pelo, vá lá, empresário Carlinhos Cachoeira.
O que será que Jefferson teria a dizer de Waldomiro, que ele não teve a iniciativa de mencionar.
Chego, finalmente, ao que ele disse quando perguntado sobre os nomes dos mensalistas. “Isso eu vou deixar para a imprensa investigar”, respondeu.
“Essas coisas não se escondem”
A semana passada foi, com perdão do clichê, pródiga em comentários de jornalistas e políticos que destacavam dois aspectos aparentemente paradoxais do mensalão: o seu ineditismo (“nunca se viu antes algo parecido com isso”) e a sua trivialidade (“todo mundo pelo menos tinha ouvido dizer que isso acontecia”).
O próprio Jefferson diz que “era conversa cotidiana na Câmara a repartição de mesada entre os deputados da base aliada, em especial o PL e o PP”. E em outro momento da entrevista, sobre o efeito-Lula: “O que eu sei pela vivência da Casa -– essas coisas não se escondem (grifos meus) – é que houve uma atitude forte, porque o mensalão secou.”
Diante disso, me permitam perguntar em caixa alta: POR QUE A IMPRENSA NÃO INVESTIGOU O ESCÂNDALO MONUMENTAL?
Em setembro do ano passado, o Jornal do Brasil deu uma materiola sobre o assunto, calçada em declarações atribuídas ao ex-ministro das Comunicações e deputado federal (ex-PDT, ex-PPS, agora PT), Miro Teixeira.
Chamado a se explicar pela Corregedoria da Câmara, “Mirinho”, como é conhecido na política carioca desde os tempos do seu patrono Antonio Pádua de Chagas Freitas (que contribuiu para o léxico político do país com o substantivo “chaguismo”) desmentiu ter dito o que o JB disse que ele disse – e, a julgar pelo que foi dado aos brasileiros ler, ouvir e ver – nenhum órgão de mídia foi atrás dessa história, um bolão quicando na pequena área. Pode-se apenas especular por quê.
Mas se eu fosse repórter político em Brasília — e ali há pelo menos meia dúzia deles que merecem ganhar o dobro do que ganham, seja quanto isso for – estaria me perguntando o que é que eu vou dizer lá em casa.
“Viva o povo brasileiro”
Para recobrar o alto astral, leiam o caderno de Economia do Estado. É melhor do que soa. Porque ali, na décima-segunda e última página, o Brasil profundo mostra o seu lado luminoso.
O repórter Renato Cruz leva o leitor a um vilarejo de exótico nome, Almécegas, e previsível realidade. A 130 quilômetros a noroeste de Fortaleza, vivem Almécegas umas 800 almas, sem água encanada, esgoto, telefone e luz elétrica.
Mas a escola do miserável lugarejo tem não 1, não 2, não 3, não 4 – mas 5 computadores. Doadas por uma ONG ambientalista de Fortaleza, o Ider, as máquinas funcionam a energia solar – pelo menos isso não falta nesse país bendito pela natureza.
Transcrevo: “Com dois anos de funcionamento, o centro de internet já deu alguns resultados. As crianças desenvolveram mais visão crítica, explica (o professor) Raulino (Ramos Menezes). Antes ficavam acanhadas na sala de aula. O professor perguntava e elas não respondiam. Com os computadores passaram a ter mai facilidade de se comunicar. Mas não foi só isso. A coleta do lixo chegou há um mês à escola. Para o professor, um dos motivos foi o trabalho desenvolvido pelas crianças pela internet.”
Viva o Brasil! Esse.