Discutir racismo no Brasil inflama as paixões. Entre outras razões, a principal talvez seja a duradoura e doce ilusão de que o Brasil é diferente do resto do planeta: terra abençoada da miscigenação, o povo é aberto, as culturas convivem em harmonia. O povo brasileiro poderia dar lições para o mundo. Caso notório de troca da realidade dos fatos pelo otimismo da vontade.
Toda vez que essa visão paradisíaca é contrariada por fatos ou opiniões, incomodados esperneiam. E cria-se um clima de torcida de futebol. Argumentos sensatos são misturados com agitação retórica, pessoas sérias dizem bobagens e com essas bobagens vão para o lixo as partes proveitosas de suas falas.
O Brasil ainda vai ter que aprender a discutir seu racismo. Passo inicial indispensável para enfrentá-lo de maneira efetiva, sem tergiversações.
Há três semanas, a ministra encarregada de promover a igualdade racial, Matilde Ribeiro, disse numa entrevista à BBC Brasil uma frase algo desastrada (‘A reação de um negro de não querer conviver com um branco, eu acho uma reação natural. Quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou‘), corrigida na frase seguinte (‘embora eu não esteja incitando isso”), e virou alvo de artilheiros verbais que andam sempre com o dedo no gatilho.
Outras pessoas da sociedade brasileira se cansam de dizer frases agressivas, sem se preocupar em se corrigir ou dar explicações, mas são deixadas em paz.
Em entrevista ao Observatório da Imprensa, Matilde Ribeiro diz que a frase da entrevista à BBC “foi destacada de uma resposta mais ampla” e, assim, “causou margem a interpretações conflituosas e polêmicas”. Mas ela também vê vantagem na polêmica que logo se criou: “Se não fosse um tema importante, não teria a visibilidade que teve”.
Matilde Ribeiro louva o trabalho do Estadão, onde o repórter Roldão Arruda publicou entrevista (“Entre os pobres, os negros são sempre os mais pobres”, 8/4) em que ela defende seus pontos de vista, ao lado de outras manifestações. “Ele ouviu outras pessoas, ouviu opiniões diferenciadas da minha, mas ouviu a mim também e divulgou. (….) Outros tantos fizeram a cobertura, mas não divulgaram”, informa.
A ministra diz que não é prática corrente dos meios de comunicação, em qualquer área da política, dar direito de resposta.
Eis a íntegra da entrevista.
Uma frase pinçada
Foi uma entrevista sua à BBC que gerou uma nova polêmica e é sobre isso que eu queria conversar. A minha impressão, já antecipando, porque a gente não tem uma neutralidade falsa nessa história, é a de que há pessoas que ficam esperando qualquer oportunidade para botar o dedo na cara de outras pessoas e dizer: “Olha aí! Está vendo?” A entrevista da BBC foi correta? A BBC é um meio de comunicação muito prestigiado e muito acatado. A BBC fez direitinho o trabalho dela?
Matilde Ribeiro – A área que eu desenvolvo no governo Lula é uma área delicada para a sociedade brasileira, uma vez que durante a maior parte da nossa existência nós fomos induzidos, enquanto nação, a pensar que o racismo não existe, que as desigualdades são sociais, e que vivemos num país com a democracia racial. Qualquer informação fora deste vetor causa polêmica; e, no caso, a BBC, que tinha uma pauta naquele momento – colher informações, opiniões sobre o desenvolvimento das desigualdades raciais no mundo, tendo como ponto de partida a comemoração dos 200 anos desde que a Inglaterra deixou de traficar escravos – , fez a pergunta direcionada ao Brasil e eu dei uma informação que causou margem a interpretações polêmicas, que fugiu dessa máxima inicial. Qualquer setor midiático exploraria isso como uma polêmica.
[Clique aqui para ler a entrevista no site da BBC Brasil.]
A senhora diria que a própria BBC foi a primeira a fazer isso?
M.R. – A frase que foi destacada de uma resposta mais ampla causou margem a interpretações conflituosas e polêmicas.
O site da BBC Brasil fez, duas horas depois, uma enquête eletrônica em que a frase é novamente pinçada [“Racismo. A ministra Matilde Ribeiro, titular da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), disse que considera natural a discriminação dos negros contra os brancos. Em entrevista à BBC Brasil para lembrar os 200 anos da proibição do comércio de escravos pelo Império Britânico, considerado o ponto de partida para o fim da escravidão em todo o mundo, ela disse que ´não é racismo quando um negro se insurge contra um branco´. ´A reação de um negro de não querer conviver com um branco, eu acho uma reação natural. Quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou´, afirmou. Você concorda? Dê sua opinião. Publicado: 27/Mar/2007 12:27 GMT.”]
M.R. – Na minha resposta, o conteúdo era muito mais amplo que este. Eu dizia que, devido à forma do racismo e da discriminação racial no Brasil, se poderia chegar a este resultado. Mas na mesma frase eu disse que não concordo com isso, que não acho isso uma boa.
Tema tem visibilidade porque é importante
A senhora neutraliza ali alguma interpretação dessa natureza. [“A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora eu não esteja incitando isso”.] Como outros veículos usaram isso?
M.R. – O que aconteceu depois foi que isso despertou interesse dos principais veículos da imprensa, principalmente dos meios de comunicação escritos. Também foi para a televisão, foi para o rádio, mas principalmente a mídia escrita manteve o tema em evidência durante 15 dias. Justamente porque é um tema importante. Se não fosse, não teria a visibilidade que teve. De qualquer forma, eu acho importante que o debate seja feito. Não é muito prazeroso para ninguém estar em evidência da maneira como estive, mas é muito importante que o trabalho seja divulgado. De qualquer maneira, isso demonstrou de certa forma um balanço em relação às ações do governo Lula, que eu considero muito positivas para a vida política brasileira.
“Estadão teve abordagem imparcial”
Dos grandes veículos, quem lhe deu a palavra, com toda a tranqüilidade, depois, foi o Estadão. Se eu não estou enganado…
M.R. – Sim. Há um jornalista interessado neste tema, estudioso deste tema, e que fez uma abordagem, eu diria, imparcial. Ele ouviu outras pessoas, ouviu opiniões diferenciadas da minha, mas ouviu a mim também e divulgou.
Roldão Arruda.
M.R. – Exato. E divulgou. Outros tantos fizeram a cobertura, mas não divulgaram.
Quer dizer que nesse caso o Estadão se destacou positivamente, teve fair play? A opinião do jornal é contra ações afirmativas.
M.R. – Eu considero que foi uma postura correta. Acho muito importante que qualquer veículo de comunicação tenha o seu posicionamento – eu respeito o posicionamento de todos –, mas eu acho importante que o direito de resposta, o direito à voz seja dado em qualquer veículo. Eu acho que o Estadão cumpriu sua missão.
Provavelmente a Seppir tem um clipping onde aparecem manifestações sobretudo de articulistas, com uma posição e outra. A senhora também teve alguns apoios importantes, de pessoas de grande prestígio, como o Luís Fernando Veríssimo.
M.R. – Sim, sim. Brilhante, a resposta dele [resumidamente, “Nenhum racismo é justificável, mas o ressentimento dos negros é. Construiu-se durante todos os anos em que a última nação do mundo a acabar com a escravatura continuou na prática o que tinha abolido no papel”], que eu acho que demonstra um apoio a mim – ele nem me conhece pessoalmente –, mas, acima de tudo, demonstra um apoio a uma política que está alicerçada num campo democrático. E, além dele, outras manifestações importantes, como de Marilena Chauí, Mino Carta, pessoas que pensam a sociedade brasileira de maneira construtiva.
Uma discussão que sempre provoca conflitos
Como a discussão sai desse episódio?
M.R. – Considero difícil, no avanço da política da igualdade racial, não nos depararmos com conflitos, justamente porque este é um tema que faz parte da estrutura brasileira, com pouco tratamento institucional ao longo da história do Brasil. O debate sobre ações afirmativas está na ordem do dia. Existem pessoas contra, existem pessoas a favor, e nós temos a convicção de que é papel do governo brasileiro contribuir para a superação das desigualdades raciais. Considerando isso, daqui para a frente estamos entrando numa segunda gestão que deve ter como compromisso consolidar, reafirmar experiências que já foram colocadas em prática na primeira gestão. A Seppir tem o papel de coordenar políticas junto aos diversos órgãos de governo, para a implementação das ações afirmativas. Numa segunda gestão, considerando que já existiu na primeira todo o delineamento a partir de identificação das leis, normas, projetos e programas que devemos colocar em prática, o aceleramento das ações, visando resultados efetivos, deve ser a nossa preocupação. O presidente Lula acabou de definir o novo ministério e nós estamos nos colocando, a partir de uma ação planejada, a serviço de consolidar essas políticas.
Direito de resposta não é prática corrente
A senhora recebeu manifestações de apoio de instituições do movimento negro? Por que, se recebeu, isso não apareceu na imprensa?
M.R. – Não é muito comum, na nossa estrutura brasileira, que o movimento negro se manifeste de maneira explícita através dos meios de comunicação. Isso acontece em raríssimas situações. Por parte do movimento social, eu recebi muitas manifestações de apoio via internet, via cartas, via telefonemas, mas a expressão diante dos meios de comunicação é sempre muito baixa, em qualquer tema. No caso eu estou considerando a intervenção do movimento negro. Não há como prática no Brasil a expressão visível e sistemática deste setor.
Entretanto, nas seções de cartas dos jornais as pessoas que discordam das ações afirmativas se manifestam em massa.
M.R. – Aí há um posicionamento dos próprios veículos.
Os veículos selecionam cartas que são mais conformes ao pensamento deles?
M.R. – O que eu avalio é que o direito de resposta no Brasil ou o apoio explícito de setores da sociedade nos meios de comunicação não é prática corrente. Isso vale para qualquer área da política.
(Transcrição de Tatiane Klein.)