De novo, os jornais brasileiros dão o exemplo concreto e real da manipulação catalogada pelo jornalista Richard Halworth Rovere como ‘falsidade múltipla’, Rovere era jornalista, faleceu em 1979 e é autor do ‘Senator Joe McCarthy’, um clássico sobre as sombras do macartismo nos EUA, não disponível em português. Em um de seus ensaios, resgatado pelo jornalista Elio Gaspari em sua coluna de 20/11/2005, Rovere explica como se dá a falsidade múltipla..
O exemplo vivo da teoria está nas edições dos jornais Folha de S.Paulo de ontem e O Estado de S.Paulo de hoje. Abaixo, na leitura das reproduções dos textos dos dois jornais o leitor topará com palavras grifadas que procuram apontar onde se dá a manipulação.
Esclarece-se, apenas, que não se pretende questionar a veracidade das afirmações do entrevistado, mas sim de como fatos são propositalmente moldados.
Ao final da reprodução dos textos, tem-se a teoria da falsidade múltipla publicada pela coluna de Elio Gaspari.
Folha de S.Paulo – 18/03/05
(rubrica) ESCÂNDALO DO ‘MENSALÃO’/ PALOCCI NA MIRA
(subtítulo) Ex-funcionário agora afirma que viu ministro na ‘casa do lobby’ ‘muitas vezes’
(título) Motorista diz ter levado dinheiro para ministério
(legenda da foto do motorista): Francisco Chagas da Costa no depoimento à CPI dos Bingos em que disse ter visto Palocci ‘’três vezes, mais ou menos´ na ‘casa do lobby`
LEONARDO SOUZA – DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Estimulado pelo depoimento do caseiro Francenildo dos Santos Costa à CPI dos Bingos, o motorista Francisco Chagas da Costa, 56, resolveu contar, segundo diz, tudo o que viu e ouviu durante os onze meses em que trabalhou para a ‘república de Ribeirão’, formada por ex-assessores do ministro Antonio Palocci (Fazenda) na Prefeitura de Ribeirão Preto (SP).
(…)
Francisco diz também ter visto o ministro ‘muitas vezes’ na casa do Lago Sul alugada por Poleto. A casa foi descrita pelo advogado Rogério Buratti, outro integrante da ‘república de Ribeirão’, como uma central de encontros de lobistas e empresários com negócios de interesse no governo Lula.
Em depoimento à CPI dos Bingos na semana passada, em que envolveu Palocci na ‘casa do lobby’, Francisco disse tê-lo visto lá ‘três vezes, mais ou menos’.
Assim como Francenildo, o motorista diz que Palocci chegava à casa sempre num Peugeot prata de Ralf Barquete, outro ex-assessor de Palocci. Porém, ao contrário do caseiro, disse nunca ter visto Palocci dirigindo o carro.
Os depoimentos contradizem o ministro, que tem afirmado não ter mantido contato com seus ex-assessores de Ribeirão.
Maranhense, Francisco diz que não mente por ser um homem ‘honesto’ e porque ‘sua religião [é evangélico] não permite’.
Francisco trabalhou para a ‘república de Ribeirão’ de março de 2003 a janeiro de 2004. Contou que conheceu Poleto, Buratti e Ralf Barquete, morto em 2004, por meio do empresário Roberto Kurzweil, dono do Omega que, segundo reportagem da revista ‘Veja’, teria sido utilizado em 2002 para transportar dólares vindos de Cuba para o PT.
Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha.
(…)
Folha – Quando eles falavam sobre o ministro Palocci, referiam-se a ele como ‘o chefe’?
Francisco – O chefe.
Folha – Sobre o que conversavam quando se referiam ao ‘chefe’?
Francisco – Falavam que ‘o chefe vai hoje na casa’. Falavam que tinha que organizar. O Vladimir [Poleto] gostava muito de falar que tinha que acionar a casa, ‘porque o chefe vai hoje’.
Folha – Quando eles falavam em acionar a casa para o ‘chefe’ era dia de semana, final de semana?
Francisco – Variava muito. Final de semana, meio de semana.
Folha – Eles levavam ‘o chefe’ freqüentemente à casa?
Francisco – Quase toda semana.
Folha – O ministro, então, mantinha sempre contato com eles?
Francisco – Com certeza, todos os dias.
Folha – Todos os dias?
Francisco – Quando estavam aqui, né? O Buratti vinha por um dia só, né? Sempre quando vinha, tinha contato.
Folha – Sempre que o Buratti vinha a Brasília ele se encontrava com Palocci?
Francisco – Quando não se encontravam, se falavam no telefone.
Folha – O sr. presenciou encontros de Palocci com Buratti?
Francisco – As vezes em que se encontraram era na casa.
Folha – Quantas vezes eles se encontraram na casa?
Francisco – Não sei, muitas vezes. Se eu falar dez vezes, quatro vezes, estou mentindo, né? Muitas vezes.
Folha – O sr. viu Palocci na casa?
Francisco – Eu vi ele entrando na casa. Ele ia de carro.
(…)
Folha – Francenildo [o caseiro] disse que o ministro ia à noite, dirigindo sozinho o carro.
Francisco – Ele sabia porque estava lá, era o caseiro. Eu não tenho como confirmar, eu não estava lá.
O Estado de S.Paulo – 19/03/05
(título) Motorista confirma declarações de Nildo ao ‘Estado’
Ontem, o motorista Francisco Chagas da Costa, que trabalhou durante 11 meses para a chamada República de Ribeirão em Brasília, confirmou ter visto ‘muitas vezes’ o ministro Antonio Palocci na casa do Lago Sul. Assim como revelara ao Estado o caseiro Francenildo Santos Costa, Francisco contou que o ministro sempre chagava na mansão dirigindo um Peugeot prata. (…)
Teoria da falsidade múltiplia
‘A falsidade múltipla não precisa ser uma grande falsidade, mas pode ser uma longa série de falsidades tenuemente conectadas, ou uma simples falsidade com muitas facetas. Em qualquer caso, o conjunto tem tantas partes que se torna impossível mantê-las simultaneamente na cabeça. Qualquer tentativa de demonstração da falsidade de algumas afirmações, deixa a impressão de que só aquelas afirmações são falsas e as outras são verdadeiras’.