Há mais coisas entre o céu e a terra, é o caso de parafrasear, do que supõe a fã filosofia de considerar a mídia brasileira uma instituição acima de qualquer suspeita ou abaixo de qualquer crítica.
Como tantas e tantas outras coisas, o chamado processo jornalístico – desde a escolha do que e como apurar até a decisão do que e como divulgar – está sujeito a chuvas e trovoadas que escapam ao alcance do consumidor final da informação.
Além desses acidentes de percurso não raro existe a intenção – nada acidental – de guiar o noticiário na direção dos interesses (políticos, econômicos e pessoais) dos barões da imprensa e dos executivos das redações. Negar isso seria tapar o sol com a peneira.
Daí a dizer que isso e apenas isso determina a forma como a mídia cobre, noticia e comenta as denúncias de corrupção que envolvem o partido do governo, para não falar no próprio, vai um abismo cujo tamanho de vez em quando os fatos e as palavras permitem vislumbrar.
Todos devem se lembrar, por exemplo, da decisão do Diretório Nacional do PT, tomada no sábado, 10 – por um voto de diferença – condenando a política econômica do governo Lula.
Os adeptos da teoria da história como conspiração – aplicada, no caso, ao tratamento que o PT recebe da imprensa brasileira – denunciaram nos dias seguintes o que entenderam ser o tom “golpista” da cobertura daquele evento, ocorrido a portas fechadas.
Para dizer o menos, acusou-se o noticiário de carregar nas tintas, quando passou, entre outras, a versão de que o vice-presidente do PT e assessor internacional do presidente Lula, professor Marco Aurélio Garcia, “só faltou pedir a cabeça do [ministro da Fazenda] Palocci”, como assinalou um editorial do Estadão da terça-feira seguinte. O jornal, de todo modo, teve o cuidado de atribuir essa informação a “inconfidências de participantes do encontro”.
‘Maus petistas’
Pois bem. Ontem se ficou sabendo que a publicação da notícia alegadamente maliciosa não era mais uma evidência do facciosismo midiático em relação ao PT.
E se soube pela boca de ninguém menos do que o próprio Garcia.
Em dado momento da sua interessante entrevista ao Globo, em que ele fala abertamente das “limitações e dificuldades” do PT no governo, o repórter Ricardo Galhardo lhe pergunta na lata:
“O senhor ajudou a redigir a resolução do PT que faz críticas à política econômica e pede redução da meta de superávit primário?”
“Não”, rebate Garcia. E aí ele conta que votou a favor da emenda apresentada pelo senador Aloizio Mercadante que tirava do documento o pedido de redução do superávit. Mas isso foi só o começo.
Coisa rara em entrevistas do gênero, o entrevistador não se dá por satisfeito e volta à carga:
“Por que pessoas do PT dizem que o senhor age para derrubar o ministro Antonio Palocci?”
Resposta: “Tem um personagem concreto, que [sic] não vou revelar o nome, que está se encarregando de tentar criar uma incompatibilidade minha com o ministro Palocci.”
Decerto para evitar mal-entendidos, como o de supor que esse personagem concreto seria um jornalista querendo golpear o partido, o repórter insiste: “Mas são pessoas do próprio PT.”
E aí o leitor tem a chance incomum de saber como são feitas as salsichas e as notícias – antes de culpar a mídia, assim, em geral, pelo que seria uma tentativa de desmoralizar o PT, desestabilizar o governo e impedir a reeleição de Lula, como tantos dizem.
Porque Garcia afirma: “Se são pessoas do partido posso lhe dizer quem são. São os maus petistas.” E acrescenta: “Pessoas que não são do partido e pegaram carona no governo estão alimentando esse tipo de polêmica, valendo-se de um acesso privilegiado aos meios de comunicação”.
Isso deveria servir de alerta aos que raciocinam em bloco. Nem tudo que se lê contra o PT parte da imprensa “venezuelanizada”, como diria o presidente Lula. Nem o partido, nem os seus aliados são confrarias de querubins, vítimas da mídia solerte e mendaz.
Ali, os que têm “acesso privilegiado aos meios de comunicação” – leia-se, os que são procurados (ou atendidos) por repórteres e editores, porque lhes passam versões “em off” de histórias de bastidor – servem um misto de trigo (informações quentes e verdadeiras) e joio (falsidades que têm interesse em plantar para promover ou destruir reputações).
A culpa da imprensa, no caso, é de comprar o peixe sem olhar as guelras e, como se diz nas redações, mandar ver nas pretinhas, sem checar a preciosa informação recebida. Esse é um costumeiro pecado profissional. Atinge ou beneficia pessoas físicas e jurídicas indistintamente. Não confundir com conspirações – que também existem, mas pesam menos no dia-a-dia do que o mau jornalismo, no sentido técnico da expressão.
“Uns me acusam por desinformação. Outros mentem para se proteger”, acusou também em entrevista [no Estado de ontem] o ex-ministro Luiz Gushiken, atual chefe do Núcleo de Assuntos Estratégicos do governo. Em momento algum ele disse ou sugeriu que os acusadores ou os mentirosos são jornalistas.
‘No meu partido, não aceito isso’
E todos quantos consideram que a intelectual petista Marilena Chaui achou a pedra filosofal ao investir desbragadamente contra a imprensa, considerem também as palavras do cientista político, também petista, Juarez Guimarães, da UFMG, sobre a companheira [na Folha de ontem]: “Acho que se generalizou uma idéia a partir de uma condição muito particular da professora Marilena Chaui.”
E considerem, por fim, o amargo desabafo de outra petista histórica, a socióloga Maria Victória Benevides [também da USP, como Chaui]: “Não perdôo os responsáveis pelo que aconteceu no partido. Não aceito e não perdôo. No meu partido, não aceito isso, de forma alguma.”
Ele não estava falando da mídia. Nem de jornalistas.
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