O colunista Luís Nassif publica – e comenta – na Folha de hoje trechos do e-mail que lhe enviou o diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo, Ali Kamel. Mensagem e resposta contêm os dois lados da moeda de um debate oportuno.
Nassif tinha batido pesado na Globo por ter o Fantástico mostrado o advogado de Suzane von Richthofen instruíndo-a a chorar em dado momento da gravação de uma entrevista dela ao programa. A instrução, captada involuntariamente e descoberta quando da edição da matéria, foi ao ar domingo passado.
Segundo o colunista, a exibição violou a confidencialidade da relação advogado-cliente e contribui para jogar a opinião pública contra a cúmplice confessa do assassínio de seus pais, ao mostrá-la como criminosa fria e cínica. Isso, presumivelmente, prejudicará o seu direito a um julgamento justo quando ela for a juri.
Nos trechos publicados do e-mail, Kamel afirma, primeiro, que a instrução do advogado foi registrada sem querer, ‘não tendo havido, portanto, nenhuma invasão de privacidade’.
Nassif argumenta que ‘a invasão não consiste em gravar inadvertidamente conversas de terceiros, mas em divulgá-las’.
O argumento é bom, mas não bom o bastante.
Pelo simples fato de que a instrução do advogado era indissociável do evento jornalístico então em curso: a entrevista de Suzane. Para usar uma das palavras mais gastas do léxico culto brasileiro, estava no ‘contexto’ da produção de uma reportagem.
A meu ver, o consumidor de informação – leitor, ouvinte, espectador – tem todo o direito de conhecer as origens e circunstâncias das informações produzidas que lhes são ofertadas.
Entrevistas previamente combinadas – o encontro em si, não um eventual acerto espúrio entre as partes, bem entendido – constituem informação produzida. Não são nem um pouco ilegítimas por isso, mas o público deve ser posto a par do contexto em que se deram, sempre que isso tiver o potencial de afetar a sua avaliação do que lhe foi dado ler, ouvir ou ver.
Sem a divulgação da instrução do advogado para a sua cliente chorar, ficaria faltando um elemento decisivo para que os espectadores do Fantástico formassem opinião sobre o fato jornalístico e a conduta de sua principal protagonista.
Desse ângulo, o problema seria o mesmo se o advogado tivesse mandado Suzane chorar, rir, fingir um ataque histérico ou adotar qualquer outro comportamento naquela situação de evidente importância para ela. Do contrário, nem entrevista haveria.
Antes de continuar com o e-mail de Kamel transcrito por Nassif, um exemplo do descaso da mídia em relação ao direito do público ao contexto de determinadas histórias.
Na terça-feira passada, tanto a Folha como o Estado publicaram entrevistas com o advogado Rogério Buratti. Em ambas – e pela primeira vez – ele confirmou que o então ministro Antonio Palocci esteve na casa onde trabalhava como caseiro o hoje nacionalmente famoso Francenildo dos Santos Costa, cujas revelações abriram o buraco onde Palocci se enterrou.
Não é que Buratti tivesse falado aos dois jornais ao mesmo tempo. As entrevistas são diferentes. Mas a coincidência de sua publicação levanta uma dúvida óbvia: foi dos entrevistadores ou, como parece, do entrevistado a iniciativa?
Se foi dele, o leitor devia ter sido informado. Melhor ainda, cada entrevistador deveria ter perguntado a Buratti por que ele resolveu falar – e, naturalmente, publicar a resposta. Fecha parênteses.
Na segunda passagem do e-mail, citada por Nassif, Kamel o desafia com um elogio indireto:
‘Diante das suas indagações, fico imaginando como você teria agido: publicaria a entrevista escondendo o que estava por trás dela? Duvido.’
Resposta:
‘Certamente teria mencionado a encenação, mas contextualizado, explicado ao telespectador a dificuldade de montar uma linha de defesa com uma opinião pública que já prejulgou.’
Se bem entendo, seria o contexto do contexto. Algo mais ou menos assim:
‘O que vocês vão ver agora é a tentativa de uma farsa que os microfones da Globo captaram sem querer’, começaria dizendo o repórter ou o apresentador do programa. E completaria:
‘O advogado de Suzane von Richthofen a orienta a chorar na hora de responder a uma pergunta na entrevista que ela deu ao Fantástico. Isso é compreensível ou até legítimo. Faz parte do difícil preparo de uma linha de defesa para a sua cliente. Difícil porque o advogado acha que a opinião pública já a condenou antes de ser julgada. E ele pode ter razão.’
Ou seja, a Globo deveria levar o espectador a ver o problema pelos olhos da parte interessada em empulhá-lo com lágrimas sob encomenda.
Para um jornalista, a única parte interessada que interessa é o seu público. Por isso, a contextualização sugerida por Nassif, para servir ao defensor de Suzana, desserviria o público, induzindo-o a ser condescendente com quem quis impingir-lhe uma imagem de novela para provocar emoções baratas.
No limite, a Globo estaria advogando para o advogado. Ou muito me engano, ou não deve ser essa a ética da mídia.
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