Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

No bunker, ninguém percebe nada

Foi ontem que o site nomínimo pôs no ar o artigo do jornalista Ricardo Kotscho, ex-secretário de Imprensa do Planalto, que hoie a Folha de S.Paulo reproduz com destaque, debaixo de uma notícia-chamada em quatro colunas.

Para os colegas que conhecem Kotscho e não passaram em Marte os últimos 2 anos, 4 meses e 25 dias, a leitura do seu artigo até que seria dispensável, por assim dizer. Basta o título: “O vento virou e eu não percebi”. Ou o da Folha: “Kotscho defende CPI e vê fim de feira moral no país”.

Eu não sei, nem fui perguntar, para poupá-lo, a que horas ele escreveu o seu texto taludo (no tamanho e no conteúdo), atraente (a começar da descrição do episódio que lhe inspirou o título) e cristalino (como são, invariavelmente, os seus escritos).

Para ser mais preciso, não sei se ele produziu as 768 palavras do tema principal do artigo antes ou depois de saber que os ministros José Dirceu e Aldo Rebelo – juntos, uma vez na vida – tinham ido nessa mesma terça-feira ao apartamento do deputado Roberto Jefferson para convencê-lo a tirar a sua assinatura e a dos demais 13 petebistas que imitaram o seu falso “beau geste”.

Antes ou depois de saber que o notório político, citado no vídeo dos Correios como mentor da cobrança de propinas na empresa, disse para a petebizada que o ouvia que a dupla palaciana só faltou se ajoelhar diante dele para que se dissociasse do pedido de CPI. (Ele não entrou em detalhes sobre os argumentos usados pelos penitentes.)

Antes ou depois de saber que a mesma figura, continuando a se vangloriar, contou que duas vezes tinha se recusado a receber o “primeiro-ministro” do governo Lula e o seu acompanhante, de tão furioso que estava com o fato de que só o presidente se solidarizou com ele depois que o escândalo irrompeu.

E antes ou depois de saber que, sempre segundo o “ex-troglodita” confesso, eles só conseguiram subir ao apê porque a empregada abriu-lhes a porta, enquanto ele tomava banho.

Deixem-me dizer desde logo que em hipótese alguma eu compraria um carro novo, quanto mais usado, do antigo capitão da tropa de choque collorida. A história da empregada, por exemplo, é contestada por outra versão.

Segundo o repórter Ilmar Franco, no Globo, o que fez o bravo deputado receber os peregrinos palacianos, foram os “insistentes apelos” do ministro petebista do Turismo, Walfrido Mares Guia, por telefone, lá do Japão onde estava à espera do seu chefe, ainda na Coréia.

Isto posto, a narrativa jeffersoniana sobre, é o caso de dizer também, os “insistentes apelos” do duo planaltino soa plausível, descontados e debitados à vanglória do autor os seus eventuais exageros.

E a razão da verossimilhança é a mesma que levou o íntegro repórter Ricardo Kotscho a escrever o que decerto só escreveu a contragosto, porque ele não é de brincar de esconde-esconde com a verdade. Ou seja, porque o ar que ultimamente se vem respirando em Brasília, com intensidade cada vez pior, é, sim, de “fim de feira moral”.

Nesse clima, o que poderia ser mais natural do que a heróica missão de Dirceu e Rebelo chez Jefferson?

E para quem acha que isso é facciosismo político, pretexto para falar mal do PT (não sei por que, mas deixa pra lá), recomendo vivamente – e acabrunhado porque também eu, que não votei no Lula, queria que o seu governo não fosse o que é – a entrevista do senador e ex-ministro Cristovam Buarque na Folha de domingo.

Quem ainda não leu e puder ler, leia ao menos o título: “Planalto sem projeto vende a alma pelo poder, diz Cristovam”. É Kotscho puro, avant la lettre. A mesma “desesperança”, a mesma “indignação” do jornalista. A mesma reação diante de “um velho filme que não gostaria de ver mais, mas que voltou às telas da vida”.

Um comentário final sobre o desabafo do repórter “amigo de Lula há mais de 20 anos”, como a Folha informa aos presumivelmente poucos leitores que disso ainda não soubessem.

Numa passagem do artigo se lê que ele “e muitos amigos do governo em que trabalhei nos últimos dois anos” não perceberam que o vento tinha virado.

Se isso serve de consolo ou autor, ou aos amigos, companheiros, simpatizantes e eleitores do presidente, essa falta de percepção não é exclusividade petista.

Vi rigorosamente a mesma “bunker mentality” no Palácio do Planalto, onde eu aparecia vez por outra quando o inquilino era Fernando Henrique, antes de ele perder o que ali havia humanamente e éticamente de melhor, o seu assessor especial e também sociólogo Vilmar Faria.

Como os petistas, os tucanos no poder também se sentiam assediados e injustiçados. E também reagiam defensivamente contra qualquer crítica, pois a premissa era de que todas elas ou ignoravam o bem que o governo fazia ao país, graças às 240 horas por dia de trabalho dos governantes, ou agiam de má-fé por querer vê-los no último círculo do inferno.

Dobrados sobre si mesmos e se agarrando uns aos outros para se proteger do que tinham a certeza de se tratar de uma tempestade armada para ferrá-los, é claro que eles não percebiam de que lado o vento soprava e se tinha mudado de direção.

Dizia-se à época que Fernando Henrique era uma espécie de Maria Antonieta sem a peruca da desditosa austríaca que escolheu o país errado para ser rainha. Ele não era capaz de captar o sentimento da sociedade – que lhe deu o troco elegendo Lula.

E os ministros Dirceu e Rebelo, que acusam a oposição de golpismo e vão beijar as mãos de Roberto Jefferson, só para abortar uma CPI de corrupção, o que seriam? E o presidente Lula, que diz que não vendeu a alma e é contestado pelo petista Cristovam Buarque?

Eu ainda acho que Lula ficará no Planalto até 1° de janeiro de 2011. Mas já não acho com a convicção de antes. Se os ventos não desvirarem, nem o “espetáculo do crescimento”, nem mesmo o formidável carisma do presidente bastarão para ele renovar o contrato de locação do Planalto por mais quatro anos.

Tenho bons motivos para querer que os ventos mudem de rumo. Não é propriamente pela reeleição de Lula. É para devolver a alegria e a esperança ao grande jornalista e ser humano Ricardo Kotscho.