Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

No espelho da mídia, um feio auto-retrato

Pode parecer óbvio e decerto nenhum jornalista vai para o trabalho pensando nisso, mas um dos efeitos do ofício – defeitos, diria um cínico – é fazer uma sociedade se conhecer melhor.


Histórias bem apuradas, bem escritas e bem editadas; o alerta implícito ao leitor para que preste atenção especialmente em certas reportagens ou comentários, o que se exprime na própria hierarquia que o jornal estabelece nas suas páginas para os fatos e opiniões do dia; a política editorial de acolher acontecimentos e protagonistas com o mínimo humanamente possível de preconceitos – tudo isso e muito mais, como diz a publicidade, permite a um periódico ser um espelho fidedigno pelo menos de um momento na vida de um povo e do seu país.


O ponto ótimo desse processo é quando o consumidor de informação – para não falar apenas em leitor – se dá conta de que o dinheiro e o tempo que ele gasta lendo, vendo ou ouvindo jornalismo de qualidade é o que lhe dá a imperdível oportunidade de se enxergar, e ao seu entorno, com o mínimo humanamente possível de antolhos.


No dia a dia, nada, como o jornalismo livre, bem feito, inventivo e plural, supre neste mundo contemporâneo para lá de complexo a necessidade vital que era o mote do sábio Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo.”

A eterna esperança dos otimistas é que a mídia capaz proporcionar esse auto-conhecimento a amplas parcelas de população acabe também mudando para melhor, na parte que lhe toca, as condutas que formam a realidade que retrata.


No caso que motiva estas linhas, a amarga realidade que a Folha – longa vida à Folha – descortinou com a publicação dos artigos “Pensamentos quase póstumos”, do apresentador Luciano Huck, na segunda-feira da semana passada (1/10) e “Pensamentos de um ‘correria’”, do escritor e rapper Ferréz, ontem – que destila a linha da maioria dos vitupérios dirigidos ao primeiro no mesmo jornal.


[Ver, neste blog, “Painel do rancor”, de 3/10.]


No conjunto desses textos, mais os artigos, também na Folha, suscitados pela publicação do artigo de Huck e das opiniões dos leitores, está, não diria “o retrato”, porém um dos mais nítidos e deprimentes retratos do que somos hoje em dia.


Em 29 de março, ainda e sempre na Folha, o jornalista Alcino perguntou num artigo: ‘É isto um país? É isto um povo?‘.


É.


Não todo o país. Não o povo inteiro. Mas país e povo suficientes para deles se querer distância. E não penso apenas nos que escreveram para bater em Luciano Huck porque ele ousou protestar por ter sido assaltado. Penso também em certos críticos dos seus críticos. Iguais aos outros, com o sinal trocado.


E penso, mudando de jornal, mas só na aparência mudando de assunto, nas 5 linhas de coluna que me deixaram estomagado mais do que qualquer coisa que tenha lido nos diários de hoje.


São as 5 linhas ocupadas, no Estado, pela carta da leitora Susana Lopes de Alexandria, de Osasco:


“Deu no Estadão: ‘intelectuais’ da USP e alguns críticos de cinema consideraram Tropa de Elite um filme ‘de direita’. Vou correndo ao cinema, deve ser muito bom!”


Que ela seja livre para escrever o que pensa até o fim dos seus dias. Mas que dias de rancor estes nossos!