Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

No faroeste de Foz do Iguaçu há 45 anos

Entrevistei para o programa de rádio de amanhã do Observatório da Imprensa o repórter José Casado, autor de uma série sobre a Tríplice Fronteira publicada pelo Globo na semana passada. Ele reforçou algo que está na reportagem publicada na sexta-feira (9/3), “Fronteira sob estigma do terror”: o Brasil não tem política externa para a região, apenas delegou tarefas à Receita Federal e à Polícia Federal. A relação comercial do Paraguai, integrante do Mercosul, foi no ano passado mais intensa com a China do que com o Brasil. O Paraguai nem tem relações diplomáticas com a China – herança algo bizarra da Guerra Fria, ou, em outras palavras, do alinhamento automático com os Estados Unidos.


Casado diz na reportagem que “a economia local está sucateada há um longo período” e que “Foz vive uma etapa de decadência. Depois de quatro décadas de expansão, quando a população cresceu oito vezes, a cidade começa a observar um fluxo de migração rumo às zonas francas de Chile, Bolívia, Equador e Venezuela”. Uma conseqüência dessa perda de dinamismo econômico, informa o repórter, é que a cidade se tornou a campeã nacional de homicídios na juventude: 223,3 assassinatos para cada cem mil habitantes de 15 a 24 anos, entre 2002 e 2004.


Na conversa com Casado, eu lhe disse que, na minha visão pessoal, isso era retornar a um quadro que conheci há 45 anos. Ele sugeriu que eu contasse um pouco da história.


Escoteiro de calça comprida


Eu participava de um acampamento móvel do Grupo de Escoteiros do Ar Baden Powell, que saíra do Rio de Janeiro para Assunção no verão de 1962. Tinha 15 anos de idade e, como meus companheiros, passara à condição de sênior (escoteiro que usa calça comprida). Era nosso batismo. Como a tropa era dirigida por ingleses radicados no Rio, o rito se chamava “initiation”.


A viagem toda foi inesquecível, de trem, caminhão, ônibus, chata pelo Rio Paraná de Presidente Epitácio, São Paulo, a Guaíra, Paraná, onde acampamos às margens de um monumento da natureza tragado pela represa de Itaipu, as Sete Quedas. Dali fomos acampar às margens do Rio Iguaçu, pertinho das cataratas. Em seguida, chegamos à cidade de Foz do Iguaçu.


Não havia uma rua asfaltada. Conseguimos pousada com uma turma de sargentos e soldados da Aeronáutica – nosso uniforme era em tons de azul, e nosso distintivo, alado; não sei se essa “afinidade” funcionou ou se foi mesmo por camaradagem. Lembro-me do sargento mais falante, que parecia liderar a turma. Era paulista e se chamava De Paula. Se estiver vivo, terá hoje uns 75 anos de idade.


Quando nos instalamos na casa, alguém estava trocando todas as lâmpadas: na véspera, um dos moradores, bêbado, atirara nelas ao voltar da “zona”. E havia manchas de sangue no chão de tábuas: um homem fora assassinado ali não fazia muito tempo.


Fomos a um bar vizinho tomar refrigerantes. Uma adolescente vistosa atendia ao balcão. Todos – só havia homens – olhavam intensamente para o decote da moça. Um dos soldados avisou: “Não mexam com ela. O pai, dono do bar, é paraguaio. Joga facas certeiras”. A jovem funcionava como “isca” para os fregueses, mas dentro de limites muito nítidos.


Na “zona”, as mulheres não dormiam com ninguém


De volta para casa, já entrando a noite, alguém apontou para uma rua transversal e disse: semana passada um sujeito morreu ali. Alguém estava experimentando uma espingarda, atirou a esmo e acertou o homem.


De Paula nos disse que praticamente todo dia morria alguém em Foz do Iguaçu. À noite, liderou nosso comboio até a “zona”. Levava na cintura, fora do coldre, uma pistola calibre 45.


Havia um salão amplo. Em cima de um praticável, a um canto, tocavam três ou quatro homens: trompete, acordeão, que sei eu. Era o que nós chamávamos música caipira. Guarânias, talvez. As moças eram quase todas paraguaias e tinham uma notável peculiaridade: não iam para a cama com ninguém, ou pelo menos assim nos pareceu. Apenas faziam os clientes beberem mais. E o leão-de-chácara era um soldado do Exército de botas, calça de uniforme, cinturão e camiseta branca com o sobrenome estampado. Devidamente armado, é claro.


Na volta, de madrugada, De Paula disse que dias antes não tinha conseguido chegar a casa: caíra bêbado na beira da estrada e ali ficara até o amanhecer.


Carona com contrabandistas


No dia seguinte conseguimos o que procurávamos na cidade de Foz do Iguaçu: carona com um grupo de contrabandistas brasileiros de automóveis. Eles levavam seis ou sete jipes e três ou quatro camionetes Rural Wyllis até Assunção. Todas tinham a inscrição: “Ministerio de Agricultura y Ganaderia. Paraguay”.


O truque era o seguinte: o ministério comprara, digamos, cinco jipes e duas Rural Wyllis. O resto era contrabando. Na chegada, esses carros ganhariam nova pintura. Cada um de nós – éramos dez ou doze, liderados por um americano que nascera na África do Sul e fora lapidador de diamantes no Rio, Jack Kurrels, nosso chefe, figura formidável – viajava ao lado de um motorista. Um de nós, mais ousado, Ricardo Przemyslaw, conseguiu fazer com que o motorista o deixasse dirigir o jipe. Quem, naqueles ermos, iria pedir carteira de motorista a ele?


O único embaraço que tivemos foi passar a fronteira com o Paraguai. O funcionário responsável tinha ido fazer a sesta e tivemos que esperar sua volta ao posto, onde deixara um soldado. Veio com ares de durão, o que deve ter lhe rendido algo mais na negociação com o chefe do grupo. Tudo se acertou e passamos. A estrada até Assunção era larga, mas de terra, a mesma terra vermelha onipresente naquela região do Paraná.


Foi a experiência que me levou mais perto dos filmes de faroeste que víamos o tempo todo naquela época. Não havia índios, mas não faltava bangue-bangue. Infelizmente, como relata José Casado, o tempo parece estar dando uma curva completa em Foz do Iguaçu.