Decerto não fui o único a escrever em 2002 que um dos melhores, se não o melhor crítico de mídia dos Estados Unidos era o colunista econômico do New York Times, Paul Krugman.
Hoje ele torna a demonstrar que o elogio não tinha nada de gratuito. Ele volta a um dos seus assuntos preferidos: o comportamento da imprensa americana durante a montagem da grande mentira – as armas de destruição em massa de Saddam – para justificar a invasão do Iraque, e depois.
O New York Times, como se sabe, bateu no peito por não ter dado o mesmo destaque aos que diziam que as armas eram reais e aos que duvidavam disso. Mas a complacência com o governo Bush continua.
Prova disso é que quase toda a mídia americana ignorou durante cinco semanas, este ano, a revelação do Times de Londres do já famoso “Memorando de Downing Street”.
Trata-se dos registros de uma reunião, em julho de 2002, do primeiro-ministro Tony Blair com o chefe da inteligência britânica no exterior e outros espiocratas. Recém-chegado de uma viagem a Washington, o espião informou que “os fatos e as informações secretas estavam sendo arranjados (“fixed”) de modo o desejo de Bush de remover Saddam.
Krugman cita duas explicações apresentadas para justificar a frieza dos meios de comunicação dos Estados Unidos em face dessa história. Uma é que a armação de Bush de três anos atrás é hoje notícia velha. Outra é que o que passou passou: interessa o que acontece agora.
Krugman se insurge contra os dois argumentos. Observa que o pessoal da mídia “por dentro” pode ter suspeitado de que as armas eram mero pretexto, mas não só não informou o público disso, mas tampouco cobrou depois de Bush ele ter dito repetidamente que só iria à guerra em último caso.
Ele nota argutamente que o agora e o futuro não podem ser dissociados do ontem. Enquanto a mídia não privar o governo de sua capacidade de enganar e intimidar para persistir na sua catastrófica política iraquiana, as coisas só ficarão piores. “E a melhor maneira de fazer aquilo”, aconselha, “é deixar claro que aqueles que levaram a América à guerra sob falsos motivos não têm credibilidade nem o direito de nos dar aulas de patriotismo”.
Os principais canais de mídia dos EUA não o fazem porque continuam a agir como se apenas uma pequena parcela de esquerdistas acreditasse que os americanos foram iludidos, critica Krugman, antes de provar o seu ponto de que o povo passou à frente da mídia.
Mesmo antes da divulgação do Memorando de Downing Street, 1 em cada 2 entrevistados pelo Gallup concordou que o governo deliberadamente enganou o povo sobre as armas de Saddam. E, segundo outra pesquisa, 49% dos entrevistados acham que Bush é mais responsável do que Saddam pela guerra. (Culparam o ex-ditador 44%.)
Conclusão de Krugman: “Assim que a mídia tirar o atraso em relação ao público, poderemos começar a falar seriamente sobre como sair do Iraque.”
Um editorial e outro editorial
”Todos temos direito às nossas próprias opiniões”, dizem os americanos, “mas não aos nossos próprios fatos”.
Aplicando esse irrefutável princípio à imprensa, resulta claro que todo órgão de mídia tem o direito – ou o dever – de emitir opiniões sobre os fatos a respeito dos quais considera importante se manifestar. Mas não deveria adaptar os fatos às suas opiniões.
Leia-se no Estado de hoje o editorial “O preço da bravata”, atacando o projeto de lei, apoiado pelo Ministério da Saúde, que pretende ignorar as patentes dos medicamentos de combate à aids.
O jornal sustenta que a iniciativa cria para o Brasil, na área do comércio internacional, mais problemas do que os que pretende resolver no campo da saúde.
Em apoio à sua tese, o Estado informa que “as reações mais contundentes vieram dos EUA” E exemplifica: “À exceção do New York Times, que pediu ao governo americano que não retalie o Brasil, vários outros importantes jornais, como o Los Angeles Times, o Miami Herald e o Dallas Morning News, publicaram editoriais criticando o projeto.”
Não é bem assim. Mesmo o discreto resumo que o jornal deu nas páginas de notícias da posição do New York Times mostra que este fez mais do que pedir a Washington “que não retalie o Brasil”.
E a leitura do texto original não deixa dúvida do entusiástico endosso do NYT ao projeto brasileiro. O título já diz tudo: “O direito do Brasil de salvar vidas”.
Seguem-se rasgados elogios ao programa anti-aids do Brasil, “o melhor de qualquer país em desenvolvimento (…) que países no mundo inteiro agora começam a emular”.
Adiante, esclarece que o Ministério da Saúde pediu aos fabricantes dos remédios patenteados autorização para copiá-los. “Eles se recusaram”, continua o texto, “e o Brasil ameaça quebras as patentes e pagar aos seus detentores um royalty razoável, como requerem as regras da Organização Mundial de Comércio”.
Diante disso, o Times argumenta que “o que o Brasil está fazendo é legal e merece o apoio de Washington”(…). E mais: “O Brasil tem o direito de se assegurar que poderá continuar a arcar com esse fardo (a compra de remédios de uso diário pela vida inteira para 170 mil pessoas) obtendo medicamentos pelo preço mais barato possível.”
O pedido para que o governo americano não retalie o Brasil – a única referência do editorial do Estado ao do NYT – aparece apenas no fecho do texto.
Por fim, dos três “importantes jornais” americanos que condenaram o projeto, apenas o Los Angeles Times, a rigor, merece o qualificativo. Nem o Miami Herald, muito menos o Dallas Morning News figuram entre os cinco mais lidos diários da América. São USA Today, Wall Street Journal, os citados NYT e LAT, e Washington Post.